Filosofia e História: lançamento de David Hume ganha resenha

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sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

Filosofia e história e vice-versa*
Por Isabela Gaglianone 

A História da Inglaterra, de David Hume, foi escrita em seis volumes, publicados originalmente entre 1754 e 1762. Considerando o estudo da história como momento privilegiado para iluminar a busca dos povos por sua liberdade e, por outro lado, acreditando não haverem então na Inglaterra historiadores aptos a redigir a história daquela nação, pôs-se, o filósofo, a fazê-lo ele mesmo, com o intuito de se tornar o “primeiro grande historiador a escrever em língua inglesa”. Ele, naquele período, não contava com a notoriedade filosófica que consolidaria depois; foi justamente essa obra o grande êxito editorial que assegurou a fama e a segurança financeira.

Deste trabalho monumental, o filósofo Pedro Paulo Pimenta selecionou, organizou e traduziu textos capitais, capazes de oferecerem uma visão panorâmica sobre o desenvolvimento político e social da Inglaterra, além de fornecer valiosos elementos para a compreensão de seu pensamento moral e político. Este material selecionado permite, além do acompanhamento do processo de formação histórica da Inglaterra, a compreensão de como o contexto específico moldou os princípios naturais daquele povo, gerando costumes, manifestações científicas e artísticas e uma economia específicas.

O interesse de Hume recai sobre as leis gerais enraizadas em princípios da natureza humana. Aplicando seu ceticismo mitigado ao estudo da história, demonstra as relações causais responsáveis por tornar a Inglaterra a maior nação do século XVII ao lado da França, articulando, a partir da filosofia, tramas e os conflitos entre autoridade e liberdade, desde a conquista da ilha por César até a Revolução de 1688.

Tendo como tônica a luta dos ingleses por sua liberdade enquanto povo, em contraposição ao poder e à autoridade exercidos pelo Estado, Hume interessa-se em demonstrar a responsabilidade deste embate para erigir a Constituição inglesa. Assim, ele traça sua investigação sobre os fatos do passado perpassando não apenas a vida de reis, príncipes, parlamentares e militares – tal como era a tradição do estudo da história até então –, mas também sobre amplas e importantes esferas da sociedade, como a ciência, a religião, as artes, a economia e os costumes.

Pimenta, no artigo “Nota sobre as origens da filosofia da história”, discute a noção controversa sobre o início da filosofia da história nos textos de Herder, Também uma filosofia da história (1774) e de Kant, Ideia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita (1783), uma nascente filosofia da história procurava “legitimar as suas aspirações, certamente originais, frente a um saber estabelecido que ameaçava, de antemão, desautorizá-las. Nesse embate, o nome de Hume teve um lugar especial, por se tratar, sem dúvida, daquele que primeiro pôs em prática o programa de uma análise filosófica da experiência política moderna. Medindo forças com o gênio de Hume, Kant e Herder visam, cada um a seu modo, encontrar um lugar para o saber que desponta”.

O comentário de Pimenta aponta que Kant sabia “que sem o apoio da história tradicional, a filosofia da história estaria destinada à quimera. Em nota à passagem da Ideia que acabamos de citar, ele diz: ‘a primeira página de Tucídides (diz Hume) é o único começo de toda verdadeira história’. A frase completa de Hume é esta: ‘a primeira página de Tucídides, em minha opinião, é o começo da verdadeira história. Todas as narrações precedentes são tão misturadas a fábulas, que os filósofos devem deixá-las, em grande medida, para que embelezem os poetas e oradores’. Em nota a essa passagem, Hume acrescenta que os historiadores antigos ‘são mais cândidos e mais sinceros do que os modernos’, enquanto estes os superam em acuidade, graças à difusão dos livros, que, com a invenção da imprensa, tornaram-se mais acessíveis, logo mais fáceis de consultar. Nos documentos e nos livros, o historiador encontra suas fontes mais seguras e mais fidedignas, testemunhos lavrados de preferência a partir de experiência direta, compostos segundo regras da gramática de uma língua, e que são assim legíveis e decifráveis, por quem quer que se disponha a lê-los e interpretá-los. A dependência da facticidade histórica em relação ao testemunho direto, lavrado em documento razoado, ou seja, glosado ou comentado por um autor confiável, é tamanha, que Hume não hesita em classificar a história como o conhecimento dos signos da linguagem em que os eventos são transmitidos à posteridade”. Pimenta prossegue sua análise: “[…] como no gênero de fonte delimitado por Hume encaixam-se apenas e tão somente, na Antiguidade, os historiadores gregos e os latinos, que fornecem, por sua vez, os cânones da historiografia moderna, a frase de seu ensaio citada por Kant tem um sentido preciso: o começo da história é o começo da história da Europa, tal como registrada pelos gregos, e a história de outras nações – como advertirá Gibbon, um especialista no gênero – só tem interesse na medida em que diga respeito à história da Europa. Não por outra razão Kant afirma que ‘somente um público instruído que persistiu de seu começo até nós ininterruptamente pode garantir a autenticidade da história antiga’. A única diferença em relação a Hume, quanto a esse ponto, é o uso do advérbio ininterruptamente. Hume é mais reticente. Considera que a permanência das fontes documentais não dispensa o trabalho da reinterpretação e do ajuste de perspectiva; sem mencionar que nem tudo o que restou de tempos antigos é testemunho fiel da experiência (o antigo e o novo testamento são os exemplos mais flagrantes disso). Em todo caso, a ideia de que a leitura está por trás desse gênero da arte de escrever é preservada pelo filósofo alemão, mesmo às voltas com o projeto de uma ‘história do mundo que de certo modo tenha um fio condutor a priori’”. Em uma lição, proferida, como o diz Pimenta, “por volta de 1775, Kant inscrevera a História da Inglaterra no quadro de uma antropologia, estudo da ‘natureza da humanidade’ que não se confunde com o ‘comportamento fortuito dos seres humanos ou com o estado das coisas’ em dadas circunstâncias. O interesse da antropologia é pelo que tem ‘relação com a conduta prudente dos seres humanos’, e seu propósito é ‘trazer fenômenos sob regras’. A importância da história para esse ramo da filosofia é clara. ‘Ninguém até aqui’, declara Kant,

“‘Escreveu uma história do mundo, que fosse, ao mesmo tempo, uma história da humanidade, apenas do estado de coisas e das mudanças dos reinos, parte que, tomada em si mesma, é enorme, mas que, considerada no todo, é uma trivialidade. Todas as histórias de guerras são a mesma, pois não contêm senão histórias de batalhas. Mas pouco importa, no todo, se uma batalha foi ou não ganha. Mais atenção deveria ser dada à humanidade, em sua História da Inglaterra, Hume provou que isso é possível’”.

De acordo com o professor Márcio Suzuki, em artigo escrito ao caderno Ilustríssima do jornal Folha de São Paulo, em 2011, “Hume marcou a história da filosofia com seu ceticismo ‘mitigado’, que questiona a superioridade da razão em relação ao instinto. Ao aliar serenidade e bom humor à investigação intelectual, concebeu a filosofia como atividade galante, que se vale da diversão e da imaginação livre para resolver problemas”.

O volume com seleção de textos da História da Inglaterra – Da invasão de Júlio César à Revolução de 1688, feliz lançamento no mercado editorial brasileiro, foi publicado pela editora Unesp. Conta ainda com uma cuidadosa apresentação, também preparada pelo professor Pedro Pimenta.

*Este artigo foi publicado originalmente no site O Benedito, em 21 de janeiro de 2016. Clique aqui e confira.