Pedro da Luz, diretor do Instituto de Arquitetos do Brasil, destaca livro de Jürgen Habermas em artigo

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sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

Mudança estrutural da esfera pública*

Por Pedro da Luz

O livro Mudança Estrutural da Esfera Pública, do filósofo alemão da Escola de Frankfurt Jürgen Habermas é leitura fundamental, para compreender nosso tempo contemporâneo, principalmente no que concerne a ampliação ou redução da efetiva experiência democrática. Habermas caracteriza o nosso tempo moderno, a partir das Revoluções Americana e Francesas, como um grande esforço por criar arenas públicas com a função de discutir nossas ações prioritárias e futuros possíveis. A pretensão é reforçar a ideia kantiana do uso público da razão, como forma de convencer nossos pares da justeza de nossos argumentos, para tal, é necessário a existência de debatedores livres e iguais. O que significa disponibilidade para debater, ouvir, argumentar e formular, tendo como premissa a vontade de colocar suas próprias convicções em dúvida, como possíveis de serem modificadas pelo outro. Tal disponibilidade de debater também deve permear o ato de planejar e de projetar em nossa contemporaneidade, podendo ser visto como um esforço que vem se ampliando.

A Escola de Frankfurt, que depois do diagnóstico pessimista contido no livro a Dialética do Esclarecimento de Adorno e Horkheimer, envereda com Habermas para uma construção mais otimista, apesar da manutenção de forte crítica aos mundos da vida, tal qual eles se configuram em nosso cotidiano. Mudança Estrutural parte da possibilidade da ampliação e construção de um fórum de debates entre iguais, com o confronto de argumentos racionalmente defendidos. Há nessa primeira grande sistematização do pensamento de Habermas um foco sobre o desenvolvimento dos processos da vida pública e política nos séculos XVIII, XIX e XX, nos países da Inglaterra, França e Alemanha. A construção claramente pretende sanar o déficit democrático dos pensadores marxistas, de forma geral, como também os da Escola de Frankfurt, que se envolveram mais especificamente com a crítica da cultura de massas.

O texto foi publicado em 1962, inicialmente seria submetido, justamente a Adorno e Horckheimer, como tese de pós-doutorado exigida para se obter o cargo de professor na Alemanha. No entanto, os dois professores da Escola de Frankfurt consideraram o texto, pouco crítico às democracias de massas do capitalismo administrado de então, e ao mesmo tempo, muito radical, na sua proposta de aprofundamento da disponibilidade do debate. Habermas acabou submetendo-o na Universidade de Marburg ao jurista e cientista político Wolfgang Abendroth, que participou ativamente dos debates de constituição da democracia alemã no segundo pós-guerra. De certa forma, Mudança Estrutural da Esfera Pública retoma a crença inicial do racionalismo alemão no Esclarecimento ou Iluminismmo (Aufklärung), como um processo emancipatório da espécie humana, se confrontando de maneira frontal com a assinalada desconfiança explicitada por Horkheimer e Adorno.

Dentro da questão da ampliação da emancipação possibilitada pelo Esclarecimento emerge o problema da qualidade da comunicação, ou da constituição de uma rede densa e aprofundada de opiniões, que pressupõe um público informado e argumentativo. As nossas sociedades contemporâneas de massa acabaram por construir um sistema de informação oligopolizado e altamente manipulador, que contrasta fortemente com o impulso inicial do Iluminismo.

“Na Alemanha, até o fim do século XVIII, havia surgido ‘uma esfera pública pequena, mas que discutia de forma crítica’… transcendendo a república dos eruditos, um público leitor universal que não se limita a ler e reler…uma rede relativamente densa de comunicação pública. O súbito e crescente número de leitores é complementado por uma expansão considerável da produção de livros, revistas e jornais, por um aumento no número de escritores, editoras e livrarias, pela fundação de bibliotecas públicas e salas de leitura…, que funcionam como entroncamentos sociais de uma nova cultura literária.” HABERMAS 2014 página39

O mundo alemão era ainda dominado pelo poder autocrático de príncipes, mas nessas sociedades e salões, nesses entroncamentos sociais já começavam a ser ensaiadas as normas da igualdade política da sociedade vindoura. A comunicação emancipadora é constituída pela presença de uma imprensa opinativa, que luta contra a censura, e que adota formas igualitárias de tratamento, liberdade de discussão e argumentação. E, que não se restringe ao campo da política e da representação estatal, mas envereda pelos costumes, pela arte, pela literatura e pela arquitetura, conformando uma esfera pública que discute os temas mediante razões. Habermas também mencionará a emergência de uma esfera pública plebéia, que ao lado da burguesa constituirá um projeto contra-hegemônico, e que já coloca a questão de que não há um público singular e homogêneo, mas altamente diferenciado.

“É evidente que essa cultura popular não era de maneira alguma apenas um pano de fundo, isto é, uma moldura passiva da cultura dominante; era também a revolta violenta ou moderada, retomada periodicamente, de um contraprojeto para o mundo hierárquico da dominação, com suas festividades oficiais e suas disciplinas cotidianas.” HABERMAS 2014 página44

Além das culturas populares, Habermas também aponta o caráter patriarcal dos canais de comunicação no século XVIII, afinal a esfera pública burguesa e o contraprojeto plebeu excluiram as mulheres e a lógica feminina. Habermas irá apontar a literatura do século XIX, como o esforço de vanguarda nesse campo para mudar mentalidades enraizadas, permitindo a nossa percepção para o caráter patriarcal da esfera pública burguesa. O sufrágio feminino apenas será alcançado na Inglaterra e no Brasil na década de trinta do século XX, comprovando que apesar do desenvolvimento e da ampliação lenta da inclusão das mulheres, na prática a participação efetiva só se materializa com muita luta.

No mundo contemporâneo, a comunicação manipuladora parece vitoriosa, grandes conglomerados de forma monopolista dominaram a mídia, fazendo-a prisioneira de interesses particulares que manipulam a esfera pública. A pulverização de vários editores, jornais, revistas do início do Iluminismo é substituída por grandes conglomerados de mídias, repetindo-se uma tendência geral do sistema capitalista de suprimir a concorrência pela monopolização. Nesse sentido, Habermas é muitas vezes visto como um utópico, um formalista descontextualizado da barbárie, que se instalou a partir da monopolização dos veículos de comunicação. Na verdade, me parece que o projeto habermasiano opera no sentido de nos lembrar, que o impulso inicial da esfera pública burguesa pode ser recuperado, mesmo que no âmbito da afirmação utópica.

No campo do projeto de arquitetura e de urbanismo, nos mesmos anos sessenta, três autores empreenderam um grande esforço no sentido de ampliar o acesso ao processo de debate do nosso vir-a-ser construído; Aldo Rossi, Christopher Alexander e Kevin Linch. Três arquitetos que constroem sua obra na perspectiva de ampliação do espaço democrático da cidade, do debate entre ações essenciais e prioritárias, contrapostas a operações manipuladoras e espetaculares do seu futuro. Os livros; A Imagem da Cidade de Kevin Lynch, de 1960, Ensaio sobre a Síntese da Forma, de Christopher Alexander, de 1964 e A Arquitetura da Cidade de Aldo Rossi de 1966 operam no sentido de ampliar a compreensão da produção do espaço construído pelo homem. Todos os três estão fortemente vinculados a um viés estruturalista, bastante presente naqueles anos. Rossi se autoproclama de forma clara, um neo-racionalista, uma exceção, naqueles tempos de forte crítica à razão.

O campo do plano e do projeto vem ampliando de forma contínua sua disponibilidade para ampliar a participação em torno de suas decisões…

Pedro Luz é arquiteto e doutor em Urbanismo (UFRJ/FAU-Prourb). Sócio-gerente da Archi5 Arquitetos Associados Ltda, desenvolveu projetos para o Rio Cidade e o Favela-Bairro, e para o Jardim Botânico e o Parque do Vale dos Contos, em Ouro Preto. Foi professor adjunto da PUC-Rio e coordenador-geral do programa Morar Carioca. Atualmente, é professor adjunto (UFF/EAU), diretor do IAB e presidente do IAB-RJ.

Este artigo foi publicado originalmente em 11 de fevereiro de 2016, no site do Instituto de Arquitetos do Brasil do Rio de Janeiro. Clique aqui e confira. 

 Assessoria de imprensa da Fundação Editora da Unesp