A atualidade de Norberto Bobbio

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quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

Reflexões do filósofo político italiano ajudam a pensar o caótico mundo atual

Por Katia Saisi

Num momento em que o mundo ainda está abalado com os trágicos acontecimentos na França, em 13 de novembro, e preocupado com o futuro dos valores democráticos, dois livros de um dos maiores filósofos políticos do século XX chegam para iluminar um debate ainda dominado pela paixão. 

Em Política e cultura, coletânea de 15 ensaios, Norberto Bobbio (1909-2004) discute o papel do intelectual neste cenário dominado por posições extremistas e intolerantes. Já em Democracia e segredo, o político analisa como segredos, mistérios e funcionários corruptos ameaçam as instituições democráticas.

Política e cultura

Ao se recusar simplesmente a escolher entre posições extremadas, o autor italiano traça a figura do intelectual que, talvez ainda mais do que em seu tempo, é fundamentalmente necessário neste século XXI: o mediador que trabalha tendo como referência a virtude da tolerância e, como método, o diálogo racional.  

Essa posição assumida de um intelectual que funciona como consciência crítica do poder o leva a esboçar então uma teoria da democracia. Escritos em meio à polarização comunismo/capitalismo do pós-guerra, os ensaios fornecem as bases teóricas para se pensar em um liberalismo que seja tanto sensível às questões de justiça social, quanto limitador dos poderes do Estado em relação às liberdades individuais.

Não se trata de um simples posicionamento contemplativo, que evita tomar partido de uma determinada ideologia, mas de uma recusa consciente à polarização e convicção de que o debate político pode acontecer por meio de uma razão libertadora e esclarecedora. Para isso, a ideia de cultura ocupa um papel de destaque, evitando que se formem verdades definitivas para se produzir os questionamentos racionais necessários para a vida democrática. 

Mais do que um livro sobre o papel do intelectual nas sociedades modernas, esta obra é uma reflexão sobre a sua importância ao exercer uma função ativa no campo da política e também fornecer conhecimentos técnicos úteis para reformar a sociedade. 

A vida em sociedade até pode se contentar com o silêncio, mas é dever do homem da cultura restabelecer a confiança no diálogo, pois, pergunta Bobbio, “como seria possível a distensão sem o entrelaçamento de um diálogo contínuo, sincero, vivo e fecundo entre as partes em conflito?”. Para ele, o homem de cultura deve estar mais preocupado em disseminar dúvidas do que em colher certezas.

Franco Sbarberi assina a introdução e organização; Jaime A. Clasen, a tradução.

Democracia e segredo

O segredo foi por séculos um elemento considerado fundamental para a arte de governar. Com o advento da democracia moderna, esta passa a ser idealmente caracterizada como o governo cujos atos se desenrolam publicamente, sob o controle da opinião pública. Mas, paralelamente a esse poder visível, defende Norberto Bobbio, há um outro, invisível, que  assume várias formas: aquela que se volta contra o Estado (como as organizações criminosas); a que se organiza para extrair benefícios ilícitos do Estado (como as formadas para a corrupção); e aquela que se constitui como instituição do próprio Estado (os serviços secretos).

Democracia e segredo discute uma questão absolutamente contemporânea tanto no Brasil como em outras partes do planeta: os riscos que as práticas ocultas por parte de governos e instituições estatais representam para o regime democrático. 

Norberto Bobbio avalia nesta obra esse poder invisível em diferentes textos, tendo como cenário os acontecimentos políticos italianos à época em que vivia: o escândalo P2 (que revelou cerca de dois mil nomes, muitos deles personalidades políticas e de outros poderes, que conspiravam para desestabilizar a ordem constitucional) no início dos anos 1980; as chacinas mafiosas no final da mesma década que se seguiram ao processo de Palermo; e o caso Gladio, nome em código usado pela CIA para as operações paramilitares anticomunistas na Europa. Para o autor, esses exemplos mostram o quanto o poder é opaco. “E a opacidade do poder é a negação da democracia”. Uma reflexão que ganha corpo hoje em dia, principalmente em relação aos novos poderes de vigilância e controle, como os recentemente revelados por Edward Snowden, pelo WikiLeaks.

Pois se o poder invisível é “uma ameaça intolerável que deve ser combatida com todos os meios”, Bobbio também adverte que “quando a caça às bruxas faz sua aparição em uma sociedade democrática, a liberdade fica em perigo e a democracia corre o risco de se converter em seu oposto”. Dessa forma, a questão mais irremediável entre as promessas não cumpridas da democracia é precisamente a da transparência do poder. Afinal o “poder oculto”, aninhado no fundo falso do estado democrático, pode, pouco a pouco, “contaminar e condicionar em medida crescente as instituições legítimas”. 

A tradução é do cientista político Marco Aurélio Nogueira, com organização de Marco Revelli.

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Katia Saisi é jornalista, mestre em Comunicação e doutora em Ciências Sociais. É colaboradora do jornal O Dia, de Marília, onde este artigo foi originalmente publicado no dia 24 de novembro de 2015, páginas 8 e 9.