Por André Luiz Joanilho
Há obras que devem ser tratadas como tomadas de consciência de uma nacionalidade, mesmo que não tenham essa intenção. Autores que tratam daquilo que poderíamos chamar de “alma” nacional, acabaram indo um pouco além e dizendo mais do que intencionaram. É o que acontece com o livro de Jeffrey Lesser. Pelo texto, pela pesquisa e pelas descrições históricas, o autor pretendia apresentar o Brasil para um público não brasileiro, mais especificamente, para um público norte-americano. No entanto, acaba dizendo mais sobre nós do que poderíamos esperar.
O livro A invenção da brasilidade, mesmo que não tenha colocado claramente, é uma história comparada entre Brasil e Estados Unidos. Estão ali os mitos de origem. O norte-americano é claro: a Terra Prometida, o Novo Israel, portanto, ali é o lugar de chegada e de construção do futuro. Já o nosso mito é uma “não origem”. Somos estrangeiros numa terra estrangeira. Na realidade, o nosso mito é um “não mito”: terra de passagem; terra de fronteira; confins do mundo. Como entender um lugar, um país que o seu mito de origem é desmistificação da origem (quer dizer, o tempo todo não é um mito)?
Vários pesquisadores americanos já discutiram o Brasil e muitos trabalhos foram aceitos como fundamentais para estudos brasileiros, apesar de um passado de desconfiança e até mesmo desprezo por parte de intelectuais brasileiros com relação ao trabalho de brasilianistas, termo que de início era pejorativo. Mas, hoje, aceita-se melhor o trabalho desenvolvido por pesquisadores americanos sobre o nosso país. Talvez algum tipo de ciúme profissional tenha sucedido à desconfiança dos anos 1960 e 1970, mas trabalhos produzidos originalmente fora do nosso país têm sido bem aceitos e, alguns, superam o simples estudo, tornando-se chaves explicativas da nossa nacionalidade.
Jeffrey Lesser, conhecedor da nossa “alma”, quer dizer, das nossas pequenas idiossincrasias, produziu um texto para nós, brasileiros, ultrapassando, o seu objetivo inicial, como foi dito. Sem ferir suscetibilidades nacionais, com algum tipo de crítica sobre o modo como construímos nosso país, ele apresenta uma narrativa clara e didática de como nós nos formamos a partir de fora. Bem ao contrário do mito americano: o país se forma de dentro para fora. Se é a Terra Prometida, então, todos os que ali chegaram devem agir de acordo com a promessa.
Não somos promessa de nada, a não ser de extração de riquezas, algo não dito. Portanto, os recém-chegados não tinham (talvez não tenham ainda) nenhum compromisso com a terra de acolha, a não ser extrair o máximo possível e o mais rápido. Diferença básica do nosso liberalismo com o americano. Somos individualistas no sentido de tirar o máximo proveito pessoal, enquanto o individualismo americano vai entender isso como, no mínimo, grosseiro e, no máximo, ilegal. Se alguém enriquece por lá, deve, de alguma maneira, demonstrar gratidão à Terra Prometida, daí as filantropias “desmedidas” de endinheirados que tupiniquins se maravilham.
Tendo isto em vista (é bom lembrar, não foi dito), Jeffrey Lesser nos apresenta um quadro constante de chegadas. Vagas humanas aportaram nestas terras e teriam o único móvel de encontrar o bem-estar econômico. Em momento algum, muitos não vieram para o seu “verdadeiro” lar, mesmo imaginário. Eram estrangeiros em terra estrangeira (é claro que pode se objetar que mesmo os Estados Unidos não foram exatamente uma terra de acolhimento, e não foram mesmo, mas cultivaram o mito o suficiente para que se acreditasse nisso; diferença fundamental).
A intenção é anunciada, por Lesser, logo no começo: A imigração é um tema que permite discutir o Brasil como “nação” (em termos de etnicidade e identidade nacional), paralelamente à postura mais tradicional, mas igualmente produtiva, de falar de “os Brasis”. Sua diferença face à uma “tradição” historiográfica busca incluir o nosso país numa perspectiva não mais “excepcional”, como é comumente tratada a nossa história, perante a América, mas como equivalente às formações das nacionalidades americanas, incluindo os Estados Unidos, isto é, a América é terra estrangeira (evidentemente que não para as populações autóctones, que os governos fizeram questão de também torná-las estrangeiras nas suas próprias terras).
Assim, esta será a principal hipótese de Lesser, grupos de imigrantes se tornaram brasileiros ao incorporar a cultura majoritária, mas permaneciam como grupo distintos (p. 25). No entanto, o autor positivamente nos lembra que estas identidades não eram fixas, ao contrário. Por exemplo, mesmo “não brancos”, isto é, europeus, como árabes ou japoneses, se tornaram “brancos” no Brasil, pelo menos foi o modo que encontraram para negociar os seus lugares na sociedade brasileira. Assim, permanecer distintos significava, e significa, distintos no Brasil, mesmo que isso não tenha nenhuma correspondência real e efetiva com o lugar de origem. Chineses se tornam japoneses, árabes se tornam antepassados longínquos de indígenas, italianos do Tirol se tornam austríacos, descendentes de italianos se enobrecem achando na internet possíveis brasões com nomes de famílias, assim por diante. Há um jogo constante das identidades com as circunstâncias.
Este padrão explicativo faz o livro mais interessante, pois nos apresenta um quadro geral, não exaustivo, da nossa formação, algo um pouco esquecido após a década de 1970. Histórias locais e regionais se tornaram muito mais comuns nos últimos anos, sendo abandonada qualquer perspectiva mais geral, como se a História do Brasil estivesse resolvida, para uma parte da historiografia, a partir da explicação econômica por meio da linhagem estabelecida por Caio Prado Jr. Portanto, todas as outras histórias (políticas, sociais, culturais) só são possíveis por causa desta linha mestra e única.
Sem expor isso claramente, é o que faz Jeffrey Lesser ao encontrar móveis gerais e específicos nesse processo. Por isso que a sua “pequena” História da nossa nacionalidade é exemplar. Se temas comuns como o branqueamento, a ideia de que o imigrante melhoraria o nosso país (aliás outra hipótese do trabalho de Lesser), a necessidade de trabalhadores dóceis para a agricultura e de povoadores para as regiões fronteiriças, apresentam de que modo se compôs a população. No entanto, a imigração acabou constituindo uma sociedade feita de diversidade e de fluidez, é o que demonstra o autor: “nunca houve uma identidade nacional única e estática: a própria fluidez do conceito faz com que ele esteja aberto a intervenções vindas de um ou de outro lado” (p. 23). Esta será a tônica da obra.
O desejo das elites em “melhorar” o país com imigrantes acaba refletindo na postura de quem chegou aqui e seus descendentes: “muitos brasileiros entendem o termo imigrante como uma condição ancestral ou herdada, que permanece mesmo entre os nascidos no país após várias gerações [...]. As pessoas de ascendência imigrante raramente usam categorias hifenizadas [...], enfatizando, ao contrário o local de origem de seus ancestrais” (p. 29). “Após gerações, muitos brasileiros continuam sendo estrangeiros. Algo que não somente afeta a nossa ideia de nacionalidade, mas é um fenômeno continental” (p. 31).
Essa fluidez é uma marca da negociação da identidade nacional, para parafrasear o título do livro anterior de Jeffrey Lesser, Negociando a identidade nacional (1). Grupos de imigrantes jogam o tempo todo com outros grupos e com aquilo que poderíamos chamar de ideias dominantes. Por exemplo, chineses vendem na Avenida Paulista, em São Paulo, yaksoba em carrocinhas, mas, na verdade, é o lo-mein, uma espécie de macarrão chinês. Falam com sotaque japonês, pois “rebatizaram o prato ao perceberem que suas vendas e seu status de recém-chegados aumentariam muito caso eles se apresentassem como japoneses” (p. 205). Mesmo os japoneses tiveram de fazer um exercício difícil de se tornarem “brancos” e aceitos no Brasil.
E este tipo de negociação não se limita aos asiáticos. Árabes e judeus tiveram de fazer (e fazem) constantemente o mesmo exercício. Italianos também se apresentaram como “brancos” (só para lembrar: no imaginário da elite brasileira desde o século 19, branco significa povos do Norte da Europa).
Entretanto, o que o autor não explorou nesta obra – e não é uma crítica, mesmo porque não havia esta proposta – é que grupos de imigrantes que se apresentam como homogêneos (italianos, japoneses, árabes etc.), não o eram nas suas origens. Essas identidades nacionais também foram negociadas entre eles. O mais sintomático, e isso foi discutido no livro anterior do Jeffrey Lesser, é o caso dos “japoneses” que, na realidade, são na sua maioria imigrantes de Okinawa, considerados por muitos habitantes de Hokkaido, inferiores. Estes sim designam-se como japoneses. Mesmo os imigrantes de Okinawa sabiam disso, porém, a questão do prestígio social na terra de adoção falou mais alto e, hoje, muitos descendentes se apresentam simplesmente como “japoneses” no lugar de um esclarecedor “nipo-brasileiros”. E também muitos aceitam com tranquilidade serem chamados de “japoneses”, demarcando assim uma especificidade.
O mesmo se passa com descendentes de italianos que no lugar de “ítalo-brasileiros” preferem associar brasões de nobreza aos sobrenomes, sem a menor preocupação histórica ou de veracidade. Muitos fazem festas anuais com pessoas com o mesmo sobrenome, comemorando a “origem” comum, quando, no lugar de origem pertenciam a comunidades diferentes e muitas vezes rivais. São comuns as histórias dessas rivalidades aportarem no Brasil, como a dos italianos do Norte, por exemplo, que desprezavam italianos do Sul, utilizando entre si termos cunhados no Brasil de menosprezo dos imigrantes da Itália em geral, como a expressão “carcamano” (2), de origem espanhola.
Mas, a grande questão é a que permanece, por que não se criou uma identidade tipicamente brasileira? A resposta não foi dada diretamente, mas ao longo de toda a obra. Jeffrey Lesser aponta para a nossa especificidade: somos um povo tipicamente multicultural. Não no sentido em que podemos ver nas grandes cidades europeias ou americanas, mas num sentido tipicamente sul-americano e brasileiro: incorporamos o que é estrangeiro na nossa identidade.
Isso é notável quando o autor relata o anedótico caso do Rabino Shalom Emmanuel Muyal. Morto em 1910, foi enterrado no Cemitério São João Batista, em Manaus. Por volta de 1930 surgiram histórias sobre possíveis milagres que aconteceram em torno de seu túmulo e “o Rabino Muyal é chamado por muitos de o Santo Judeu Milagreiro de Manaus. Sua sepultura transformou-se em uma parte tão importante da cultura local que, em 1980, os líderes da comunidade judaica recusaram o pedido do sobrinho do rabino, que queria reenterrar o tio em Israel” (p. 171-172). A incrível história nos remete para essa profusão de identidades que constitui a nossa nacionalidade.
Porém, como reparo final, cabe dizer que o autor não explorou as diferenças regionais. Muitos imigrantes, como os alemães antes da unificação e mesmo italianos depois da unificação não se reconheciam, originalmente como membros de uma mesma comunidade histórica, linguística e cultural. Havia rixas entre, por exemplos, italianos do norte e italianos do sul, quando os primeiros menosprezavam os segundos chamando-os de “carcamanos”. Entretanto, é necessário dizer, esta discussão não consta da proposta do livro, portanto, não se pode dizer que faltou. Mas, se me é permitido fazer esta sugestão, este pode ser um tema para um próximo trabalho. As obras comporiam um painel bem interessante sobre a nossa nacionalidade.
notas
1
LESSER,Jeffrey. Negociando a identidade nacional. São Paulo, Unesp, 2001.
2
O verbete carcamán, significando pessoa de pouco mérito e muitas pretensões, na Argentina passou a se referir aos pejorativamente aos italianos especialmente os de origem genovesa. Ver: MOLINER, María. Diccionario de uso del espanhol. Madrid, Gredos, 1988, p. 519.
sobre o autor
André Luiz Joanilho, doutor em História, é professor assistente do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal do Paraná.