O diretor-presidente da Fundação Editora da Unesp (FEU) e diretor de comunicação da Associação Brasileira das Editoras Universitárias (Abeu), Jézio Hernani Bomfim Gutierre, assina artigo no boletim de setembro da Associação de Editoras Universitárias da América Latina e do Caribe (Eulac). No texto, Gutierre trata do papel fundamental das traduções como fonte de integração no debate científico transnacional.
Leia a íntegra abaixo:
A edição acadêmica deve assumir duas responsabilidades cardeais. No âmbito mais amplo, deve tornar disponível o que se pode chamar de “cânon”. As aspas são prudentes, pois a expressão tem aí cunho um tanto idiossincrático se comparado ao que comumente se entende ao se falar em “cânon literário”, por exemplo. Ao contrário deste, não são destacados apenas os clássicos de cada área, mas aqueles títulos que, mesmo quando recém-publicados, revelam-se como contribuições significativas para a pesquisa acadêmica contemporânea, o padrão (o kánon, em seu sentido grego original) que baliza ou cumpre passo que influenciará a investigação científica subsequente. Ainda que não sejam sempre comercialmente atraentes e, por isso mesmo, não tenham obrigatoriamente grandes tiragens, alguns textos enriquecem o diálogo científico universal e editoras universitárias não podem se eximir da tarefa de produzi-los e distribuí-los.
No âmbito e sentido mais estreitos, a edição acadêmica deve também ser guardiã do texto a ser disponibilizado, veiculando com a precisão possível as ideias constantes dos originais. Essa é tarefa tanto mais desejável quando se reconhece a complexidade hermenêutica com que muitas vezes se depara o editor. É permanente o risco de se subverter o sentido original e, assim, prestar desserviço doloroso ao debate intelectual, ou seja, justamente àquilo que se quer fomentar.
Note-se que as duas tarefas mencionadas referem-se à atividade editorial acadêmica como um todo. Mas a elaboração e publicação de traduções de livros academicamente relevantes, quando bem-sucedidas, atendem perfeitamente àqueles objetivos. No Brasil, essa afirmação fica ainda mais fortalecida quando se reconhece que o cânon, da maneira como foi definido anteriormente, é em grande parte constituído por trabalhos originalmente publicados no exterior, em línguas que não o português. Assim, se, como foi dito, a tarefa da edição acadêmica é a de editar (bem) e disponibilizar (bem) os livros que balizam a pesquisa, qualquer que seja a área considerada, então, traduções, em países como o Brasil, são ou deveriam ser elementos naturais na constituição do catálogo de uma editora universitária.
Com esse pano de fundo, não deixa de ser estranho que uma difusa antipatia por vezes acompanhe a edição de livros acadêmicos traduzidos. Uma das possíveis fontes para essa reticência talvez decorra de avaliação inacurada do papel do editor de traduções. Um observador distraído pode ser tentado a dizer que o editor teria aí uma função menor, na medida em que o texto é de saída cristalizado e não permite as típicas intervenções editoriais de que pode tirar proveito uma primeira versão. Certamente, este não é o caso. As convenções, padronizações, decisões envolvidas na edição de traduções são – muitas vezes em comum acordo com o tradutor – cruciais para a publicação de uma tradução e honram a tarefa editorial.
Mas talvez mais comum do que a impressão de uma suposta trivialidade do trabalho editorial ligado a traduções seja a desconfiança de que a disponibilização de um texto traduzido possa tomar lugares que de outra forma seriam ocupados pela produção nacional. Quando não motivada por demanda corporativista provinciana, essa avaliação pode efetivamente decorrer de uma justa preocupação com o que se poderia chamar de submissão colonialista à produção intelectual estrangeira, especialmente a europeia e norte-americana. É certo que traduções não podem ser promovidas em detrimento da produção nacional, tanto mais quando são reconhecidas as típicas limitações de fôlego, custeio e mercado de que padecem editoras acadêmicas.
De maneira geral, conteúdos produzidos por pesquisadores nacionais devem ter a mesma receptividade que trabalhos de investigadores estrangeiros, e é isso justamente que exprime a mais característica tradição universitária: livros, enquanto legítimos veiculadores das ideias, devem ter fluxo dinâmico conforme os méritos que possuam, para o enriquecimento do debate acadêmico-científico e a devida integração da comunidade que o pratica. As publicações acadêmicas são, assim, em um sentido bem específico, supranacionais – tão supranacionais quanto a comunidade científica. Evidentemente, isso não implica que as editoras universitárias não devam fomentar a publicação acadêmica autóctone; significa apenas que o valor de um dado livro – independentemente das legítimas disposições estratégicas individuais de cada editora e a bem do fortalecimento da investigação científica nacional – deve ser considerado conforme seus méritos intrínsecos e não por sua origem.
A publicação de uma tradução não rivaliza com a produção nacional. Ao contrário, propicia o meio ambiente adequado para que a literatura acadêmica de um país absorva o que a tornará competitiva e assimilável internacionalmente. Esse é talvez o aspecto mais virtuoso da publicação de traduções: ela é passo estimulante para a integração da academia nacional ao grande diálogo científico, apartando-nos da sempre presente ameaça do marasmo de um medíocre solilóquio paroquial. Traduções e publicações nacionais são faces da mesma moeda.
Salientemos essa última afirmação por um outro ângulo: a publicação, seja de traduções, seja de textos nacionais, não é, em si, necessária nem suficiente para garantir seu relevo – algo que, compreensivelmente, à primeira vista, pode soar escandaloso entre editores. No entanto, o que se busca, nesse caso, é o equivalente a uma senha que franqueie aos leitores e autores a participação qualificada no debate da comunidade científica a que pertencem. Caso não tenham acesso às publicações canônicas daquela comunidade, os autores ingressantes muito dificilmente poderão contribuir para o aperfeiçoamento do debate comunitário. Assim, a eventual versão de seus textos para idiomas estrangeiros não acarretará qualquer impacto, tanto quanto será irrisória a importância de uma tradução e publicação de texto estrangeiro que também não seja reconhecido por aquele debate.
O acesso aos trabalhos e autores definidores do campo em que atuam (o cânon) é essencial para a formação dos autores nacionais e para a sua consequente participação qualificada no diálogo acadêmico, aquilo que efetivamente é o responsável último pela dinâmica e pelo avanço da ciência. Como constituinte básico desse debate, traduções merecem apreço, cuidado, constância e relevo na edição universitária.
* Jézio Hernani Bomfim Gutierre é diretor-presidente da Fundação Editora da Unesp e diretor de comunicação da Associação Brasileira das Editoras Universitárias (Abeu).
Artigo originalmente publicado aqui (português) e aqui (espanhol).