Corpo na América e alma na África

Artigo
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segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

A relação entre raças e classes no Brasil é complexa; relação que reflete o paralelismo histórico entre passado e presente, e a compreensão de que são acepções categoricamente iguais do sistema econômico. 

Por Isabela Gaglianone*

Manolo Florentino, na já clássica obra Em costas negras – uma história do tráfico negreiro de escravos entre a África e o Rio de Janeiro (séculos XVIII e XIX), propõe uma significativa revisão da história do tráfico negreiro escravista, analisando as estruturas política, social e econômica tanto no Brasil quanto na África, nas quais influiu o deslocamento de cerca de 10 milhões de africanos entre os séculos XVI e XIX.

Florentino investiga como os mercadores de escravos, classe social ascendente, influenciaram na própria constituição do costas negrasEstado brasileiro. Sua pesquisa baseia-se em uma leitura detalhada de documentos históricos, entre listagens de navios negreiros, inventários post-mortem e registros imobiliários, submetendo-a a uma metodologia estatística que vincula necessariamente o comércio escravista a uma crescente demanda de mão-de-obra da economia fluminense.

A organização do comércio, o autor mostra, funcionava como instrumento de viabilização da reprodução física dos escravos no Brasil, e contava com a anterior produção social do cativo na África, sendo que esta dava-se por um lado através da violência – o que, em termos econômicos, efetivamente baixava os preços – e, por outro lado, em termos sociais, pela cristalização da hierarquia e das relações de poder.

Florentino prova que nenhuma outra região americana esteve tão ligada à África por meio do tráfico como o Brasil – a segunda maior área receptora de escravos negros, composta pelas colônias britânicas no Caribe, recebeu pouco menos de metade da quantidade de africanos que desembarcou no Brasil.

O que o historiador analisa é a ressignificação, tanto simbólica quanto estratégica, do Oceano Atlântico enquanto elemento de formação do território e, portanto, do Estado nacional brasileiro. As duas costas representam dois momentos de um mesmo sistema: a produção escravista americana e a reprodução de escravos do lado africano.

Na esfera da demanda brasileira, a disseminação tanto da propriedade escrava quanto do exercício de uma lógica empresarial foi, em princípio, bastante reificadora. “O tráfico atlântico passa a ser afro-americano por definição, não porque signifique uma migração forçada de africanos para a América, mas sim e principalmente porque desempenha funções estruturais nos dois continentes”, escreve Florentino.

Vencedor do Prêmio Arquivo Nacional de Pesquisa em 1993, foi editado a primeira vez pela Companhia das Letras e esteve durante um tempo esgotado; no ano passado, a Editora Unesp lançou nova edição.

*Esta resenha foi publicada originalmente no site O Benedito, em 27 de fevereiro de 2016. Clique aqui e confira a publicação original. 

Assessoria de Imprensa da Fundação Editora da Unesp