Diário do Nordeste resenha "A invenção da brasilidade", de Jeffrey Lesser

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quarta-feira, 30 de março de 2016

Um Brasil de todas as cores

*Por Iracema Sales

A migração constitui uma das principais reflexões da história do cristianismo, ganhando representação simbólica no êxodo do povo hebreu, após se libertar do cativeiro egípcio e peregrinar por 40 anos no deserto em busca da terra prometida. O sofrimento dos hebreus assume o arquétipo da migração, fenômeno que acompanha a história da humanidade, verificado em diversos momentos históricos.

No período da revolução industrial, entre os séculos XVIII e XIX, os governos - tanto dos países da Europa quanto das Américas, em especial, os Estados Unidos - recrutavam mão de obra não especializada, já que viviam a era colonial.

Vistos como cidadãos de segunda categoria, essas pessoas não tinham dificuldades para entrar nesses países - muitas vezes, ganhavam subsídios dos governos, como aconteceu no Brasil. Aqui, os imigrantes tinham uma função especial: embranquecer a população e ajudar o País a entrar nos trilhos do futuro.

Hoje, o mundo passa pela terceira revolução tecnológica, realidade que coincide com a condição pós-colonial, verificada nos países europeus, nos quais a indústria não precisa mais de operários para apertar parafusos.

Diante da situação, governos passam a criar barreiras, materializadas em legislações rígidas, fechamento de fronteiras e construções de muros reais e simbólicos no sentido de impedir a entrada de migrantes, que passam a ser vistos como "indesejáveis" ou rebotalhos que não foram absorvidos pela sociedade tecnológica.

O assunto, tendo como ponto de partida a realidade brasileira, é analisado no livro "A invenção da brasilidade - identidade nacional, etnicidade e políticas de imigração", pelo historiador norte-americano Jeffrey Lesser.

Políticas

Na obra, dividida em seis capítulos, o autor toca em importante aspecto da imigração no contexto brasileiro, a finalidade de "embranquecer" a população. "A imigração representava, como ainda representa, a criação de um futuro superior para o Brasil", assinala Lesser.

O pensamento colonial encontrava eco no discurso moderno, em evidência na época, de colocar nas costas da mistura étnica brasileira a culpa pelo atraso socioeconômico e cultural da nação brasileira. Fruto da herança maldita representada pela preguiça e falta de autoestima, justamente pelo povo trazer no DNA genes dos índios e negros, consideradas raças inferiores. Guardadas as dividas proporções, esse preconceito foi reproduzido internamente, entre as regiões, ficando explícito entre Nordeste e Sudeste.

De maneira subliminar ou direta, o discurso aparecia nas entrelinhas das políticas de agrado aos homens brancos e de olhos claros, que chegavam a ganhar passagens do governo brasileiro e moradia.

Além de trabalhar na lavoura, deveriam contribuir para "melhorar a raça", ficando exacerbado o complexo de vira-lata do povo brasileiro. A ordem era apagar do código genético traços dos índios, considerados primeiros habitantes do Brasil, e do negros, trazidos da África como escravos, numa migração forçada.

De maneira minuciosa, o autor investiga como se deu a formação da controversa "brasilidade", ao costurar um diálogo entre imigração, etnicidade e identidade nacional, passando por diversos períodos da história brasileira - desde a colônia até os dias atuais, quando o País assiste a uma nova onda de migrações. Claro, na contemporaneidade, as particularidades são outras, afastando o caráter de eugenia, embutido nas legislações versando sobre as migrações nos séculos XVIII e XIX.

"A princípio, políticas influenciadas pela eugenia favoreceram a entrada de trabalhadores alemães, portugueses, espanhóis e italianos como braços para lavoura", explica Lesser. No entanto, logo essas regras começaram a ser repensadas, pois os mesmos imigrantes incumbidos de melhorar a raça traziam também na bagagem a organização social e a militância sindical.

Esses traços foram observados, sobretudo, entre os alemães e italianos - muitos não se adaptaram aos tratamentos recebidos pelos proprietários de terra, que insistiam em tratar os novos trabalhadores como escravos. Só mudava a cor negra para branca. Em algumas fazendas, os imigrantes eram alojados nas antigas senzalas.

Passado e presente

A política de embranquecimento da população não contemplava todas as raças. Os imigrantes asiáticos, por exemplo, não eram bem vistos. Outros, caso dos suíços, apesar de preencherem os requisitos da política eugênica do governo brasileiro, não se adaptaram às condições impostas pelos barões do café.

O autor lança mão das metodologias que utilizam a pesquisa histórica e a etnografia antropológica na tentativa de compreender o presente, a partir de registros do passado.

Nesse aspecto, o livro "propõe uma abordagem inovadora na historiografia sobre estudos imigratórios no Brasil, ao tratar a imigração como uma história única". Lesser consegue descobrir traços comuns entre o período colonial com o contemporâneo, quando o País assiste a uma invasão de chineses, que chegam com suas bugigangas para ocupar shoppings nos centros das cidades, como São Paulo e Fortaleza.

Movimento semelhante pode ser visto em cidades europeias, numa demonstração de que o fenômeno continua em ascensão mundo afora, desafiando governos e pondo em xeque princípios humanitários.

No Brasil não é diferente. Da colônia até os dias atuais, é possível identificar sutilezas comuns a cada período. O livro serve também para desconstruir mitos - um deles o sofrimento dos imigrantes que por aqui aportavam, explorando também o protagonismo desses grupos que "invadiram" algumas capitais brasileiras, como São Paulo.

Foram criadas verdadeiras colônias italianas e japonesas. Nos últimos anos, os bolivianos engrossam a lista de migrantes, atuando no setor de confecção, sobrevivendo de subempregos.

Identidade nacional

O livro toca em pontos delicados e controversos, como a formação da identidade nacional e a etnicidade, provando que "a ascensão social de muitos imigrantes no Brasil era frequentemente amparada em um escala de branquidão criada, por vezes, com violência". Os aspectos condensam a originalidade das teses defendidas por Lesser, tendo como base o poder de transformação das identidades.

Para o autor, elas estão sempre em formação - indo mais além, são criadas a partir de negociações dos próprios imigrantes. "Uma opção era atrair imigrante potenciais da França, da Inglaterra e dos Estados Unidos, promovendo o Brasil como um país neoeuropeu, com abundantes terras vazias, onde imigrantes brancos conquistariam de imediato um status social elevado em uma sociedade escravocrata".

A obra tenta alinhar os conceitos imigração, etnicidade e identidade, ganhando força por resultar de investigação baseada em "experiência pessoal e acadêmica no Brasil, nos Estados Unidos e em outros países nos quais realizei pesquisas e onde passei temporadas dedicadas a cursos, seminários e orientação de alunos". A chegada dos europeus ao Brasil começa no início do século XVI. Desde então, passou a receber um número cada vez maior de imigrantes de todo o Império português e da África, que entraram em contato com as populações indígenas.

É importante destacar as migrações "involuntárias" dos escravos africanos. "Mais de 4,8 milhões de escravos, cerca de 45% de todos os africanos trazidos pelo tráfico atlântico, foram forçados a se estabelecer no Brasil.

" A migração corresponde ao período de 1500 até 1882. A ideologia do branqueamento foi fundamental na formulação da política de imigração brasileira.

Segundo Lesser, nunca houve uma identidade nacional única ou estática: a própria fluidez do conceito faz com que ele esteja aberto a intervenções vindas de um ou de outro lado. Embora existisse um discurso elitista relativamente coerente, que enxergava a etnicidade como algo traiçoeiro e pretendia constranger e coagir novos residentes a aceitarem uma identidade nacional europeizada, branca e homogênea, essa postura não era a única.

Na realidade, os recém-chegados desenvolveram formas sofisticadas e bem-sucedidas de se tornarem brasileiros, alterando a ideia de nação proposta por muitos dos que ocupavam posições dominantes, escreve o autor.

*Esta resenha foi originalmente publicada no jornal Diário do Nordeste, em 27 de março. Clique aqui e confira o link original. 

Confira a publicação original abaixo:

Assessoria de imprensa da Fundação Editora da Unesp