Estado de Minas dedica página dupla ao livro "A invenção da brasilidade"

Imprensa
Imprensa
sábado, 13 de fevereiro de 2016

Em matéria de página dupla, o jornalista e editor do caderno Pensar, do jornal Estado de Minas, Pablo Pires Fernandes debruça-se sobre o recente lançamento da Editora Unesp A invenção da brasilidade, de Jeffrey Lesser. Confira o texto a seguir e a matéria original na sequência.

A contradição de ser brasileiro

O brasilianista norte-americano Jeffrey Lesser lança A invenção da brasilidade, analisando como aetnicidade e sua relação com a imigração foram fundamentais para criar a nossa identidade

PABLO PIRES FERNANDES

O professor norte-americano Jeffrey Lesser conhece o Brasil desde a juventude, mas ainda se surpreende ao constatar algumas particularidades do país que optou por pesquisar. “Para mim, é muito interessante como o governo e até indivíduos no Brasil podem ser contra e a favor a respeito de um determinado tema ao mesmo tempo”, destaca. A característica contraditória ou aparentemente paradoxal é um dos principais objetos de estudo do pesquisador para tentar explicar a formação do que ele chama de brasilidade. “Esse posicionamento faz parte da identidade nacional brasileira, de uma cultura criada não há 20 anos, mas há centenas de anos. E ela continua de maneira muito clara no país”, pontua.

Atualmente lecionando como professor convidado do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (USP), Lesser lançou A invenção da brasilidade – Identidade nacional, etnicidade e políticas de imigração, pela Editora Unesp. O livro abrange um longo período – de 1808, ano do desembarque de dom João VI no Rio de Janeiro, aos dias atuais. De lá para cá, mais de 6 milhões de imigrantes chegaram ao Brasil. A pesquisa busca explicar como a identidade brasileira foi sendo moldada, com destaque para o papel da imigração e sua relação com a mistura étnica já existente no país.

O historiador revela que passa muito tempo tentando entender a dualidade da relação entre os brasileiros e os imigrantes e seus descendentes, que considera distintiva se comparada com outros países. Cita um exemplo: no Brasil, uma pessoa pode ser chamada de turca sem ter qualquer ascendência no país do Oriente Médio. Lesser explica que o contexto é sutil e determinada referência pode assumir conotação pejorativa ou positiva – ou as duas ao mesmo tempo. “É muito variável. Ao chamar um amigo de japonês, você não sabe se está se referindo de maneira positiva ou negativa. Por outro lado, se falar: ‘Minha empregada pretinha’, há pouca dúvida sobre o que estou dizendo. Nesse sentido, as palavras não são iguais. As palavras étnicas têm suas especificidades.”

Ele ri alto ao comentar as diferentes conotações que a relação étnica pode assumir. Como em seu livro, gosta de dar exemplos concretos, observados no dia a dia. “Quando as pessoas se referem ao japonês da Polícia Federal, ninguém está querendo dizer: ‘Quem é esse japonês que veio do Japão e se infiltrou na Polícia Federal (PF)?’. Não existe essa conotação, a ponto de existir uma marchinha de carnaval sobre o japonês da PF. Ou seja: o que pode ser mais brasileiro do que marchinha no carnaval? Essa questão me chama a atenção, pois na maioria dos países não é assim.”

Em A invenção da brasilidade, seu quarto livro sobre o país, Lesser se aprofunda no tema da imigração e aborda como a etnicidade tem caráter determinante nas relações de identidade. O autor busca analisar a imigração como um processo em constante mudança. Para tal, parte da análise comparativa que conjuga estudos culturais, antropologia e história, cruzando campos do conhecimento para criar uma visão ampla do fenômeno.

Sua formação foi determinante para essa visão multidisciplinar. Ele estudou com dois importantes brasilianistas: Anani Dzidzienyo e Warren Dean. Esse último teve papel fundamental para seu envolvimento com o Brasil. “Ele achou que a gente não deveria gastar tempo com aulas teóricas, mas passar muito tempo no Brasil”, relata. Lesser chegou ao país ainda jovem, morou no Rio Grande do Sul, São Paulo e no Rio de Janeiro. “Ocorreram aquelas coisas que acontecem com jovens quando eles vão para o mundo: conheci minha esposa e nos casamos. Estamos juntos há 30 anos. Tenho uma vida tão brasileira quanto americana”, explica. Nos Estados Unidos, ele chefia o Departamento de História da Universidade Emory Atlanta, além de integrar os departamentos de Estudos Culturais da América Latina; de Antropologia; e de Estudos Judaicos e Estudos Afrodiaspóricos.

Para ele, a metodologia interdisciplinar tende a funcionar melhor para o tipo de pesquisa que realiza. Lesser conta que, ao analisar acervos históricos em um arquivo, vê aqueles objetos “com muitos olhos”. “No livro, há de comentários de coisas que ocorrem comigo na rua a documentos históricos bastante tradicionais, como cartas do dom Pedro”, afirma. “Quando vou ao cinema com meus amigos, aqui em São Paulo, ou vou à esquina tomar uma cervejinha, de certa forma, estou realizando algum tipo de pesquisa. Tudo faz parte da pesquisa.”

Lesser defende a análise comparativa ao afirmar que a posição nacionalista tende a apresentar problemas metodológicos. Ele explica que, ao cruzar dados de vários países, é mais fácil determinar especificidades e testá-las. “Nesse livro, quis ser bem claro para todos que estudam o Brasil pensarem um pouco como são os outros países, seja África do Sul, Canadá, Argentina ou China”, sustenta. Ele afirma que consegue determinar áreas em que o Brasil é excepcional, mas pondera: “Por outro lado, há coisas que ocorrem no Brasil que não são exclusividade daqui, pois ocorrem também em outras nações que tiveram escravidão e imigração em massa”. Para ele, “essas comparações vão ajudar a pensar e entender melhor o Brasil”.

Como ele é norte-americano, a comparação com os EUA se torna inevitável. “Para as pessoas dos EUA, o Brasil é, ao mesmo tempo, muito reconhecível e muito diferente. Quando viajo para a Bolívia ou o Paraguai, não reconheço esses países. Mas reconheço o Brasil enquanto norte-americano, no sentido de que se trata de um país enorme, imperialista, uma nação que cresceu nas costas de escravos, um país de imigração.” O olhar voltado para o próprio umbigo também é, para o historiador, característica comum a brasileiros e norte-americanos. “Ambos acham que o país deles é o centro do mundo.”

EUGENIA Embora o período abordado no livro não contemple o deslocamento em massa de africanos para o Brasil, o reflexo do tráfico é ponto central do argumento do historiador para determinar a constituição da brasilidade. Para Lesser, o incentivo do Estado brasileiro à imigração era orientado fundamentalmente pela política de branqueamento da população. Ao se referir ao racismo, sustenta que essa ideologia é o principal padrão que une as relações das diferentes etnias ao chegar ao país.

“Qualquer grupo – seja japonês, polonês, libanês, italiano – aprendeu muito rapidamente que a pior trajetória seria se configurar como negro, alguém de ascendência africana. Então, esses grupos, tanto no nível individual quanto no comunitário, passam muito tempo a mostrar o que chamo de ‘branqueza’ deles”, ressalta. Mesmo com esse traço em comum, as manifestações se deram de maneiras distintas. O professor exemplifica citando as fazendas que receberam italianos no interior do país, onde houve conflitos com afrodescendentes. Ele informa que documentos da polícia provam que o conflito se baseia na questão racial. “Há conflitos em que pessoas dizem: ‘Olha, não fique perto de mim, não quero que as pessoas pensem que sou seu amigo’. Isso é uma formulação”, detalha.

Outra estratégia relatada por ele é que foram produzidos no Brasil diversos livros que incentivavam casamentos entre japoneses “brancos” com mulheres brancas brasileiras, pois, dessa forma, teriam filhos brancos e contribuiriam para a política eugenista. “São duas estratégias diferentes, mas de ideologia exatamente igual”, pontua.

A política de branqueamento se sustenta na visão das elites dos países do chamado Novo Mundo e seu espelhamento no modelo europeu. “As estratégias ideológicas sempre visavam o crescimento econômico e, em termos antropológicos, afirmavam: ‘Somos tão brancos quanto vocês lá na Inglaterra, França, Alemanha etc.”De acordo com o especialista, a lógica elitista se baseia em um complexo de inferioridade econômico e “civilizatório”, mas também no fato de que a estrutura social foi erguida “nas costas dos escravos”. O historiador garante: “Essas ideologias, contínuas por muitos anos consecutivos, foram muito importantes na constituição da identidade nacional brasileira.”

Para Lesser, o papel do Estado é fundamental tanto no incentivo à imigração quanto na perpetuação do racismo, pois o controle do aparato estatal sempre esteve nas mãos de uma elite branca. Ao longo dos anos, argumenta, o Estado foi incorporando imigrantes e seus descendentes, mas, em sua maioria, eles eram pessoas consideradas brancas. “É interessante porque, no Brasil, o japonês é um branco, o chinês é um branco, o árabe é um branco, o português não é tão branco”, diz, reafirmando a constante oposição aos afrodescendentes. “Não é diversidade igual, é muito desigual, porque há muito mais brasileiros de ascendência japonesa, árabe e judaica envolvidos no Estado do que brasileiros de ascendência africana”, constata. Essa lógica, portanto, reafirma um comportamento amplamente difundido na sociedade.

Lesser observa que, apenas a partir dos anos 2000, o Estado brasileiro passou a tentar incorporar pessoas de ascendência africana. “A elite brasileira não parece muito contente com essa decisão”, diz, lembrando a discussão sobre o sistema de cotas nas universidades. “Ser parte da elite brasileira – não quero dizer apenas milionários, mas pessoas com educação universitária, etc. – é ficar muito preocupado com o fato de que a grande maioria das pessoas não são parte dessa mesma elite”, observa.

Ao mesmo tempo, ele aponta uma contradição particularmente brasileira, pois o contato entre a elite e o “povão” é constante. “Uma das estratégias da elite de se relacionar com o povão – e estou usando no sentido de controlar – é pegar certos aspectos da cultura popular e incorporá-los em suas vidas.” E conclui: “Há uma troca, mas é uma troca em que um grupo tem muito mais poder do que o outro. Para mim, o importante é como os imigrantes e seus descendentes entenderam rapidamente essa troca desigual e a usaram para se incorporar, para ter brasilidade. Funcionou.”

• A invenção da brasilidade

• De Jeffrey Lesser

• Unesp

• 292 páginas

• R$ 58 

Matéria sobre A invenção da brasilidade no Estado de Minas

3

Assessoria de imprensa da Fundação Editora da Unesp