Iracema Sales resenha 'A assimetria e a vida', de Primo Levi, para o jornal Diário do Nordeste

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segunda-feira, 23 de maio de 2016

"O fascismo não morreu"

Coletânea reúne textos do italiano Primo Levi, sobrevivente de Auschwitz, sobre o nazismo

Por Iracema Sales

A mão de um sobrevivente toca o Muro da Morte, do campo de concentração polonês de Auschwitz
( Foto: REUTERS/Laszlo Balogh )

Um dos poucos sobreviventes de Auschwitz, o químico e escritor italiano Primo Levi (1919 - 1987) experimentou, no corpo e na alma, as atrocidades desse laboratório de morte silenciosa. Sem deixar vestígios, as câmaras de gás, traziam embutida a "solução final", prometida por Hitler. Em A assimetria e a vida - artigos e ensaios 1955-1987, o autor demonstra com sua literatura que cumpriu a promessa assumida, durante a prisão em Auschwitz, que sobreviveria para denunciar o nazismo, até o fim de sua vida. A coletânea reúne artigos de jornais e transcrições de palestras, produzido ao longo de três décadas.

Sua preocupação era evitar a reprodução das "fábricas de cadáveres", como ressalta em 1973, ao constatar que após um quarto de século da carnificina, embora não existissem em nenhum lugar câmaras de gás nem fornos crematórios, "mas há campos de concentração na Grécia, na União Soviética, no Brasil. Em quase todos os países, existem prisões, instituições para menores, hospitais psiquiátricos onde, como em Auschwitz, o ser humano perde nome e rosto, dignidade e esperança. Acima de tudo, o fascismo não morreu", completa. Na época, Levi conclamou os jovens a tomarem a linha de frente nessa mudança, convite reforçado em diversos partes do ensaio "A assimetria", dos anos 1950.

A partir de uma escrita sensível, concisa e direta, Levi construiu uma carreira paralela à profissão de químico, atividade que o ajudou a se manter vivo em Auschwitz. Sempre atento, o escritor faz uma conexão entre o projeto da modernidade com o nazismo, realidade que pode ser estendida à contemporaneidade, como faz o sociólogo polonês Zygmunt Bauman, que bebe na fonte do escritor italiano. A obra revisita alguns pontos que marcaram um dos momentos mais brutais da história da humanidade até agora, além de tocar em aspecto delicado e controverso. Trata-se do movimento denominado "revisionismo histórico" que consiste em negar o Holocausto, genocídio dos judeus durante a Segunda Guerra Mundial. O que Levi rebate de imediato, afirmando ter sido protagonista.

"Nós estávamos lá", reforça. Ou seja, esteve lá vendo gente ser reduzida a fantasmas, simbolizando vestígios de uma civilização. Seu olhar aguçado traz à memória, o episódio conhecido como a "Noite dos cristais", atos de violência ocorridos em diversas partes da Alemanha e Áustria, em 1938, sob o domínio nazista. O autor não deixa passar algumas sutilezas, como a apropriação do tema pela indústria cinematográfica, em especial a pornô, ao usar os campos de concentração femininos para fazer escárnio.

Atualidade

O autor de "É isto um homem?", seu primeiro livro, no qual relata a trajetória em Auschwitz, desde a detenção pela milícia fascista, em dezembro de 1943, até a saída, em janeiro de 1945, faz análises contundentes. Em 1955, uma década após o fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), escreve texto que abre a obra "Assimetria", falando sobre a memória do campo de concentração. "É um artigo amargo, mas escrito com seu tom costumeiro: comedido, preciso, enxuto. Não faz concessões à retórica, à lamentação ou ao anátema", pontua Marco Belpoliti, responsável pela organização e apresentação da obra, dividida em duas partes.

O autor disseca a condição humana, sobretudo quando relata as situações sub-humanas de Auschwitz, cuja inscrição "o trabalho liberta", logo na fachada de entrada, protegida por cerca elétrica de arame, traduz a realidade de locais de trabalho e condomínios fechados na atualidade, numa demonstração de que a ideologia dos campos de concentração sobreviveu à Guerra. Está viva na era contemporânea. No entanto, atesta Levi: em nenhum momento da história foi verificada maneira tão cruel de exterminar pessoas. Não se tratava apenas de matar, como era verificado com os condenados à pena de morte, mantinham alguns direitos, como os olhos vendados, por exemplo. Diferentemente dos judeus, que seguiam em comboios para uma viagem sem volta, aos campos de concentração, sofrendo humilhações e sendo obrigados a cavar própria vala, compara.

Sua investigação não se resume apenas à obstinação de Hitler em dizimar os judeus, bode expiatório de todos os males da humanidade, tampouco reduzir o nazismo a um projeto pessoal do líder alemão. Pelo ótica de Levi, o fenômeno possui raízes mais profundas e distantes, não poupando sequer o país natal, berço do fascismo. "Cada época tem seu fascismo", explica, "seus sinais premonitórios são notados onde quer que a concentração de poder negue ao cidadão a possibilidade e a capacidade de expressar e realizar sua vontade".

Ao longo da narrativa, carregada de lembranças que permanecem vivas, é possível observar as correlações entre Auschwitz e o projeto da modernidade, pautado no racionalismo, bem como na ideia obsessiva de higienização, cujo ápice foi o extermínio de um povo, por pura intolerância. Ciganos, homossexuais, deficientes também aumentaram a lista dos nazistas.

A assimetria e a vida: artigos e ensaios 1955-1987
Primo Levi
Tradução: Ivone Benedetti
Editora Unesp 2016
304 páginas
R$ 58 

O artigo foi publicado originalmente aqui
Assessoria de Imprensa da Fundação Editora da Unesp