Somos ainda herdeiros diretos de muitas tradições e lógicas, sociais, urbanas e intelectuais, dos romanos antigos.Na casa de um poeta trágico na cidade de Pompéia lê-se em um mosaico, à entrada, “Cave canis”, ou seja, cuidado com o cão; os livros eram comercializados por livreiros, que incentivavam a publicação dos autores que julgavam promissores, mas que mantinham o lucro das vendas de seus livros; uma decepção amorosa, conta Marcial, era curada com uma embriaguez; em ouro de seus epigramas, o poeta diz: “Se o pergaminho for teu companheiro, pensa / em tomar longas vias com teu Cícero”, querendo dizer que o livro seria companheiro inseparável, independente de quão longa fosse a jornada, e, uma vez que o nome de Cícero se dizia “Cicerone”, aí pode encontrar-se a origem do termo cicerone.
De detalhes mínimos como estes costumes prosaicos, às concepções maiores de manipulação política pelo discurso retórico, por exemplo, ou da importância do estudo da história para a educação, há muito no que possamos nos reconhecer olhando a vida na Roma antiga.
Esta obra monumental do historiador e arqueólogo Paul Veyne, especialista na Antiguidade greco-romana, reúne uma investigação minuciosa sobre as origens da prática tão comum, a aristocratas e imperadores, do Pão e circo. Até hoje falamos utilizamos a expressão, mas segundo esta análise interessante e profunda, deturpamos seu sentido de maneira enviesada e historicamente incorreta. Qual o motivo que levava a elite romana a organizar jogos e distribuía trigo para a plebe? Seria uma prática diversionista, ou um clientelismo, quiçá por visar uma despolitização, ou somente por populismo? O poeta e pensador romano Juvenal entendia o “Panem et circenses” como a derrocada da república, pois que a massa trocava seus votos por diversão e alimento. Mas Veyne descontrói essa interpretação, desenvolvendo uma complexa chave de leitura para a compreensão dos acontecimentos históricos, sociais e políticos da época. Segundo ele, antes de ser uma deliberada estratégia de manipulação das massas e manipulação da plebe, a política do pão e circo remetia sua origem a práticas herdadas das cidades-Estado gregas, de comprometimento com a vida social por parte dos nobres, práticas que tanto embutiam um sentido de dever, como também eram usadas como demonstração de superioridade. Apropriadas de modo específico pela elite romana, em conformidade às características de sua sociedade, essas liberalidades oferecidas ao povo marcam um fenômeno mais amplo em que aristocratas realçavam sua posição social por meio de doações ostentatórias para a coletividade. Contextualizadas historicamente, são assim caracterizadas por Veyne como “evergetismo”.
Entrevistado em junho de 2009 pelo extinto caderno Mais!, da Folha de São Paulo, o historiador falou, sobre sua análise, que inverte o lugar-comum de sua interpretação como manobra de despolitização: “A doação ocupava um lugar muito importante na sociedade romana: pão (sob a forma da distribuição de trigo), circo (organização de lutas de gladiadores) e festins públicos para o povo, mas também distribuição de terras, presentes para marcar o início do ano, presentes para o imperador e seus funcionários etc. A maioria dos monumentos públicos das cidades greco-romanas (anfiteatros, basílicas, termas etc.) foi oferecida por notáveis. Eu estava convencido de que essas doações não guardavam relação nenhuma com uma tentativa de despolitização e de manobra dos poderosos para afastar o povo da política. Na sociedade romana, os notáveis não eram senhores que viviam em seus castelos, mas nobres que viviam na cidade –como, aliás, aconteceria mais tarde, na Itália medieval –, e essa nobreza enxergava a cidade como sua propriedade, que ela governava. Em lugar de embelezar seus castelos, os nobres embelezavam a própria cidade, com o mecenato: construíam monumentos públicos e assim, com sua generosidade, mostravam que eram ricos e poderosos. Essas doações ostentatórias também eram destinadas a mostrar que a cidade não podia viver senão graças a eles. Não se trata de uma despolitização dos espíritos, mas de um cálculo político mais sábio. Essa minha tese foi inspirada por ‘Ensaio sobre a Dádiva’, de Marcel Mauss.”
O livro, publicado originalmente na França em 1976, foi publicado no ano passado no Brasil pela editora Unesp, traduzido por Lineimar Pereira Martins.
*Este artigo foi publicado originalmente no site O Benedito, em 15 de janeiro de 2016. Clique aqui e confira.