Leia um fragmento da autobiografia de Goethe

Artigo
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quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

Confira o trecho do livro De minha vida: Poesia e verdade, de Johann Wolfgang von Goethe (páginas 25 a 29). Nesta obra, o mestre alemão se debruça sobre sua própria história, desde sua infância, e sobre sua relação com os homens do seu tempo. Desfilam aos olhos do leitor suas impressões sobre política, arte, história e metafísica.

Primeiro Livro*

Vim ao mundo na cidade de Frankfurt, às margens do rio Meno, aos vinte e oito dias de agosto do ano de 1749, quando os sinos dobravam a décima segunda badalada do meio-dia. A constelação era auspiciosa; o sol encontrava-se no signo de virgem e em seu ponto culminante para aquele dia; Júpiter e Vênus contemplavam-no ditosos, Mercúrio não se fazia desfavorável; Saturno e Marte lhe eram indiferentes: somente a Lua, no plenilúnio, exercia mais intensamente a força de sua contraluz, já que acabava de entrarem sua hora planetária. Opunha-se, portanto, ao meu nascimento, que não lograria acontecer senão depois de passada aquela hora.

Esses aspectos benfazejos, a que, mais tarde, os astrólogos saberiam atribuir grande importância, hão de ter sido os grandes responsáveis porme manterem vivo, uma vez que, por imperícia da parteira, fui dado como morto ao nascer e somente após toda sorte de esforços conseguiram fazer com que eu chegasse a ver a luz do dia. Essa circunstância, que fizera meus familiares passarem por grandes sobressaltos, foi de alguma serventia para meus concidadãos, pois levaria meu avô, o prefeito Johann Wolfgang Textor, a contratar um profissional de obstetrícia e introduzir, ou atualizar, a formação local de parteiras, benefícios de que possivelmente terão tirado proveito alguns daqueles que nasceram depois de mim.

Quando queremos nos recordar dos primeiros acontecimentos de nossa juventude, é comum confundirmos aquilo que ouvimos dos outros com aquilo que se constitui como expressão de nossa própria experiência. Assim, ainda que sem empreender uma investigação mais minuciosa, o que talvez não levasse mesmo a lugar algum, tenho, para mim, que morávamos em uma casa antiga; na verdade, a velha construção era o resultado da junção de duas casas contíguas. A escada, erguida no formato de uma torre alta e estreita, dava acesso aos quartos, que, de resto, não tinham outra forma de ligação; e o desnível entre os andares era equiparado por meio de degraus. Para nós, crianças – uma irmã mais nova e eu –, o cômodo predileto era o amplo e extenso corredor no piso térreo, pois conduzia até a porta de entrada, junto à qual havia uma grande gelosia de madeira, que nos colocava diretamente em contato com a rua e o ar livre. A esse espaço que o gradil treliçado encerrava – que fazia o vestíbulo lembrar uma gaiola e, na época, era muito comum nas casas de Frankfurt – chamávamos Geräms. As senhoras costumavam sentar-se ali para costurar e tricotar, a cozinheira escolhia sua salada, as vizinhas conversavam umas com as outras sem sair de suas casas e assim, na estação propícia, as ruas ganhavam um ar meridional. Sentíamo-nos à vontade, já que estávamos acostumados com o que era público. E era também nesses Gerämse que as crianças faziam seus primeiros contatos com os vizinhos. Na casa logo em frente à nossa, os três irmãos da família von Ochsenstein – filhos já mais velhos do falecido prefeito da cidade – pareciam simpatizar comigo e gostavam de me provocar, entretendo-se das mais diversas formas. 

Meus familiares faziam questão de contar as travessuras que esses senhores costumavam aprontar comigo – homens que, de resto, eram sempre muito sérios e solitários. Contarei aqui apenas uma dessas peças. Era a época da feira dos ceramistas e não apenas a cozinha acabara de ser guarnecida de louça nova, como também haviam comprado as mesmas peças em miniatura, como brinquedo para as crianças. Num belo dia à tarde, como no mais a casa toda estivesse tranquila, entretinha-me no Geräms com minhas pequenas tigelas e panelas de brinquedo. No entanto, como dessa brincadeira não resultasse nada de mais excepcional, atirei uma peça de louçana rua e descobri o quanto era engraçado vê-la se quebrar. Os irmãos von Ochsenstein, percebendo que eu me divertia a ponto de bater palminhas de satisfação, gritaram: – Mais uma! – Sem hesitar, atirei outra peça de louça no calçamento. E como não parassem de pedir por mais peças, segui arremessando minhas tigelinhas, meus cadinhos, meus potinhos. Os vizinhos aplaudiam a cada novo arremesso, e eu me sentia muito feliz em contar com sua aprovação e em lhes proporcionar aquele prazer. A certa altura, porém, minha louça de brinquedo acabou, mas os irmãos von Ochsenstein insistiam:– Mais uma! – Corri então imediatamente até a cozinha e apanhei um prato de barro, que, ao se espatifar no calçamento, proporcionava um espetáculo ainda mais divertido. Voltei várias vezes à cozinha, buscando um prato de cada vez, à medida que os podia alcançar na prateleira. E como meus vizinhos não se dessem nunca por satisfeitos, acabei espatifando na rua toda a louça que pude arrastar comigo. Só bem mais tarde apareceria alguém para me deter, mas já era tarde demais: o desastre estava dado. Toda aquela cerâmica quebrada renderia uma história ao menos engraçada, com a qual diversos autores, especialmente os mais ardilosos ainda iriam se divertir muito até o final de suas vidas. 

A mãe de meu pai, a quem, de fato, pertencia a casa em que morávamos,tinha um quarto espaçoso, contíguo ao corredor, mas que dava para a parte detrás da construção. Costumávamos estender o espaço de nossas brincadeiras até sua poltrona ou, quando ela estava doente, até junto a sua cama. Lembro-me de sua figura ter algo de espectral: uma senhora bonita, magra, sempre muito pálida e impecavelmente bem vestida. Guardo-a na lembrança como alguém doce, afável e bondosa. 

Ouvíamos as pessoas chamarem a rua em que se situava nossa casa de Hirschgraben. Mas como não víssemos por ali nem cervo (Hirsch), nem fosso (Graben), queríamos saber de onde vinha aquele nome. Contaram-nos, então,que, em tempos mais remotos, aquele lugar ficava fora dos limites da cidade e, por onde agora passava a rua, havia antigamente um fosso, em que se criavam algumas cabeças de cervo. Esses animais eram mantidos e alimentados aliem virtude de um antigo costume da Câmara Municipal, que todos os anos oferecia um banquete público, para cuja efeméride sempre havia à disposição um cervo pronto para o abate. Assim, o banquete podia ser realizado mesmo que, fora da cidade, príncipes e cavaleiros criassem para os cidadãos de Frankfurt alguma forma de impedimento do exercício de seu direito de caça; ou, até mesmo, no caso de a cidade encontrar-se dominada ou sitiada por inimigos. A história agradou-nos muito e ficávamos imaginando ali, em nossos dias,aqueles animais selvagens sendo criados em liberdade. 

Da parte posterior da casa, especialmente do andar superior, tínhamos uma vista muito agradável para um sem-número de quintais e jardins vizinhos que se estendiam até os muros da cidade. Infelizmente, com a transformação das antigas praças públicas em jardins particulares, nossa casa e algumas outras, perto da esquina, acabaram ficando encurraladas. Enquanto nas propriedades do outro lado da quadra junto ao Rossmarkt, a praça do antigo mercado de cavalos, erguiam-se casas enormes na parte de trás do terreno, reservando-se a parte da frente para amplos jardins, nosso quintal, isolado pelo que, para nós, apresentava-se como um muro demasiadamente alto, ia ficando cada vez mais distante desses paraísos tão próximos. 

No segundo andar havia um cômodo que chamávamos de “quarto do jardim”, por conta de algumas poucas jardineiras na janela, com as quais se procurava compensar a falta de um jardim de verdade. À medida que eu ficava mais velho, esse quarto foi se tornando o meu predileto na casa, um refúgio em momentos não necessariamente tristes, mas sempre algo inquietantes. Para além dos jardins que dali se podiam avistar e ainda mais além dos muros e das fortificações da cidade, abria-se uma planície bela e fértil,que se estendia na direção da cidade de Höchst. Era ali que, no verão, costumava fazer as minhas lições, esperar pelas tempestades; e não me cansava de olhar o sol se pôr no horizonte, na direção exata daquelas janelas. Todavia, como ao mesmo tempo eu também observasse dali os vizinhos cuidando das flores em seus jardins, as pessoas se divertindo e as crianças rolando as bola se derrubando os pinos de boliche nos quintais, comecei a sentir, logo cedo,certa sensação de solidão, que, por sua vez, despertaria em mim um desassossego. Sua influência, que correspondia ao que a natureza havia encerrado em mim de gravidade e apreensão, logo se faria evidente, pronunciando-se ainda mais decisivamente com o passar dos anos. 

A casa, com seus tantos cantos ocultos e sua constituição, em geral,algo sombria, era muito propícia para despertar temor e medo nos ânimos infantis. Infelizmente ainda dominava naquela época a máxima pedagógica,segundo a qual era imperioso que as crianças perdessem, tão cedo quanto possível, toda forma de medo do ominoso e invisível, acostumando-as a tudo que fosse percebido como aterrorizante. Por essa razão, crianças,como nós, tinham de dormir sozinhas; quando não conseguíamos pegar no sono e, de mansinho, deixávamos nossa cama em busca da companhia dos criados e das empregadas, logo surgia no caminho nosso pai, por baixo de seu robe todo desgrenhado – para nós, suficientemente bem disfarçado –, e espantava-nos de volta para a cama. Não é difícil imaginar o efeito negativo que resultava disso. Afinal, como libertar do medo alguém que se sente duplamente amedrontado? Minha mãe, sempre serena e alegre, e desejosa do mesmo para os outros, inventara uma saída pedagógica mais eficiente. Ela conseguia o que queria por meio de recompensas: era época de pêssego, cujo desfrute ela nos prometia para toda manhã e em abundância, caso tivéssemos superado nossos temores à noite. Funcionava muito bem e ambas aspartes ficavam satisfeitas. 

(...)

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