Se cada poeta criou para mais ou menos uma mitificação do Brasil, não foi menor a qualidade criativa literária dos seus livros, o que confirma que a poesia pode ir além da história sem necessariamente negá-la.
A interpretação do Modernismo brasileiro, a Semana de Arte Moderna, os manifestos e livros importantes como Pau-Brasil, Macunaíma, entre outros, já foram e são estudados até hoje por diversos pesquisadores. No entanto, o assunto parece inesgotável, o que, por um lado, confirma a diversidade e a importância desse período (1920-1930) para a história não só da literatura, mas da cultura brasileira de modo geral. Mas de outro, talvez, devamos nos perguntar se há outras saídas para repensarmos a ideia de Brasil, às vezes demasiado ufanista?
Não podemos esquecer que o nosso país tinha saído recentemente de um sistema escravocrata, de uma sociedade extremamente desigual, em que o Império era o modelo e uma República duvidosa que foi até 1930. Somado ao contexto internacional, o que esperar de uma literatura nova e que logo despertou para travar um debate – o qual, diga-se de passagem, permanece até hoje, entre local e universal, entre popular e erudito, folclore brasileiro e cultura europeia, enfim, uma busca sem fim para reconhecer a tão polêmica “identidade brasileira”.
Buscando rever a história do Modernismo brasileiro, a professora Vera Lúcia de Oliveira traz, no seu livro Poesia, mito e história no Modernismo brasileiro, uma importante contribuição para um problema crucial na formação da cultura brasileira: a identidade. A autora parte de três escritores fundamentais (Oswald de Andrade, Cassiano Ricardo e Raul Bopp), ainda que os dois últimos, infelizmente, sejam menos valorizados pela crítica literária. Para o entendimento da diversidade – não só do ponto de vista estético, mas também do político –, a autora, antes de dedicar um capítulo para cada poeta estudado, percorre de maneira sintética a tradição que vem desde os primeiros cronistas, como, por exemplo, a Carta de Pero Vaz de Caminha. Segundo a pesquisadora, “tanto os românticos quanto os modernistas instauraram um diálogo intertextual com os primeiros cronistas do período colonial”. O que de fato ocorreu, criando assim “raízes dos dois movimentos que mais incidiram sobre o processo caracterizador de uma identidade nacional”. Mas a questão é até que ponto essa intertextualidade resultou numa identidade realmente nacional. Esse problema, como se sabe, retorna com perspectivas diferentes, seja pelos historiadores da literatura brasileira, seja pelos historiadores e até mesmo sociólogos.
No caso desse livro, e segundo as palavras da autora, o propósito foi expor de forma resumida e panorâmica a primeira parte, que diz respeito às crônicas dos viajantes, para depois, de maneira sincrônica, ocupar-se em investigar como cada um desses três poetas, a partir das obras Pau-Brasil (1925), Martim Cererê (1928) e Cobra Norato (1931), se posicionaram sobre a identidade brasileira. Daí o recorte de mito e história, ou seja, se no modernista mais radical predomina a paródia, o deboche da história supostamente oficial; em Cobra Norato, Bopp procura resgatar as origens da mata virgem, daí o mito; enquanto em Martim Cererê parece prevalecer, ainda na leitura da pesquisadora, a apologia da história oficial, sem esquecer uma certa mitologia da cultura brasileira, tão mitificada por um José de Alencar, por exemplo. Evidentemente, essas questões são discutidas em pormenores nos capítulos dedicados a cada escritor. Se cada poeta criou para mais ou menos uma mitificação do Brasil, não foi menor a qualidade criativa literária dos seus livros, o que confirma que a poesia pode ir além da história sem necessariamente negá-la, ainda que de maneira enviesada.
Por fim não deixa de ser oportuna essa nova edição, que tem entre muitos méritos o ótimo capítulo dedicado aos estudos de Cobra Norato. É louvável também destacar que o livro tem linguagem didática sem ser simplória. Como se estivesse “narrando”, a autora, com brilho, faz com que o leitor possa ler sem se preocupar que está diante de uma tese acadêmica, o que não é pouco. Vale lembrar que faltam apenas seis anos para novamente colocarmos em discussão a história, os mitos, os prós e contras da nossa tão discutida independência, a identidade brasileira e também o que de fato representou a Semana de Arte Moderna num país que parecia estar apenas iniciando. Este livro é um ótimo começo.
* Escrito por Mário Alex Rosa: professor de literatura brasileira (Cefet-MG), poeta e autor dos livros de poemas Ouro Preto (Scriptum, 2012) e Via férrea (CosacNaify, 2013).