Memórias de Primo Levi sobre Auschwitz

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quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

Em 27 de janeiro, Dia  Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto, confira o ensaio Monumento a Auschwitz, publicado em A assimetria e a vida, de Primo Levi (páginas 7 a 10).  

Monumento a Auschwitz*

Dentro de um período relativamente breve, levando-se em conta a grandeza da obra, dentro de dois anos, talvez antes, será erguido um monumento em Auschwitz, no exato lugar em que se assistiu à execução da maior matança da história humana. Na segunda etapa da concorrência, ocorrida recentemente para a escolha do projeto, saíram vencedores com méritos idênticos um grupo de artistas poloneses e dois grupos de arquitetos e escultores italianos: da colaboração deles brotou o projeto executivo,exposto ao público em Roma, na Galleria Nazionale di Arte Moderna desde o dia 1° de julho. É bom deixar claro: não “será erguido” em sentido estrito, pois em boa parte ficará no nível do chão ou abaixo dele; não será um monumento no sentido comum da palavra, pois não ocupará menos de trinta hectares de terreno;e não será em Auschwitz, centro, ou seja, não será na cidadezinha polonesa de Oswiecim, mas em Birkenau.

Consideramos que para poucos o nome Auschwitz soa como novidade. Nesse campo foram matriculados cerca de 400 mil prisioneiros, dos quais sobreviveram poucos milhares; quase 4 milhões de outros inocentes foram engolidos pelas instalações de extermínio construídas pelos nazistas em Birkenau, a dois quilômetros de Auschwitz. Não se tratava de inimigos políticos: na maioria, eram famílias inteiras de judeus, com crianças, velhos e mulheres, retirados dos guetos ou diretamente de suas casas; muitas vezes, com poucas horas de aviso prévio, com a ordem de levar consigo “tudo o que seja preciso para uma longa viagem”, e o conselho oficioso de não esquecerem o ouro, o dinheiro e os objetos preciosos de que dispusessem. Tudo o que levassem consigo(tudo: até sapatos, roupas, óculos) lhes era retirado quando o trem entrava no campo. De cada leva que chegava, um décimo em média era transferido para os campos de trabalho forçado; nove décimos (nos quais se incluíam todas as crianças, os velhos, os inválidos e a maior parte das mulheres) eram eliminados com um gás tóxico originariamente destinado a livrar de ratos os porões dos navios. Os corpos eram cremados em instalações colossais,expressamente construídas pela honesta empresa Topf e Filhos de Erfurt, à qual haviam sido encomendados fornos capazes de incinerar 24 mil cadáveres por dia. Quando da libertação, foram encontradas em Auschwitz sete toneladas de cabelos femininos. Esses são os fatos: funestos, imundos e substancialmente incompreensíveis. Por que e como ocorreram? Irão se repetir?

Não creio que essas perguntas possam ter resposta exaustiva,nem hoje nem no futuro; e isso talvez seja bom. Se houvesse resposta para essas perguntas, significaria que os fatos de Auschwitz caberiam no tecido das obras do homem: que eles tiveram um motivo, portanto um germe de justificação. Em certa medida,temos a possibilidade de entrar na pele do ladrão, do assassino:ao contrário, não é possível entrar na pele do demente. Também é impossível refazer o caminho dos grandes responsáveis: suas ações, suas palavras permanecem cercadas de trevas para nós, não podemos reconstituir seu devir, não podemos dizer “do ponto de vista deles...”. É próprio do homem agir com vista a um fim: a matança de Auschwitz, que destruiu uma tradição e uma civilização, não trouxe proveito a ninguém. 

Sob esse aspecto (e só esse!), é altamente instrutiva a leitura do diário de Höss, que foi comandante de Auschwitz. O livro, cuja edição italiana está no prelo, é um documento arrepiante: o autor não é um sádico sanguinário nem um fanático cheio de ódio, mas um homem vazio, um idiota tranquilo e diligente, que se empenha em desenvolver com o máximo cuidado as iniciativas bestiais que lhe são confiadas, e nessa obediência parece satisfazer plenamente todas as suas dúvidas ou inquietações. 

Parece-me que só desse modo, ou seja, como loucura de poucos, com o consentimento estúpido e covarde de muitos, é que os fatos de Auschwitz podem ser interpretados. De fato, mesmo abstraindo qualquer juízo moral e limitando-nos ao plano da “política realista”, precisamos constatar que tentativas como as hitleristas, executadas em Auschwitz e meticulosamente projetadas para toda a Nova Europa, foram erros colossais. Há em todos os lugares, em todos os países, uma capacidade de indignação, uma concordância de opiniões diante de semelhantes atrocidades, que o nazismo não levou em conta e à qual o povo alemão deve, sem a menor dúvida, o estado de quarentena em que ainda se encontra. De acordo com a razão, o restabelecimento de campos de  concentração não deveria nos ameaçar.

Mas é imprudente basear previsões na razão. Jemolo observava há não muito tempo, nestas mesmas colunas, como é inútil atribuir aos adversários planos de longo alcance e uma argúcia diabólica: é como dizer que a estupidez e a desrazão são forças historicamente operantes; infelizmente, a experiência demonstrou isso e não para de demonstrar. Um segundo Hitler pode nascer, talvez já tenha nascido; é preciso levar isso em conta. Auschwitz, portanto, pode repetir-se. Todas as técnicas, depois de encontradas, vivem de vida própria, em estado de potência, à espera da oportunidadeque as leve de novo ao ato. Em quinze anos, as técnicas da destruição e da propaganda progrediram: destruir um milhão de vidas humanas apertando um botão é mais fácil hoje  do que ontem; perverter a memória, a consciência e o julgamento de 200 milhões de pessoas é mais fácil a cada ano.

Não é suficiente. A matança nazista tem a marca da loucura, mas também outra. É a marca do desumano, da solidariedade humana negada, proibida, rompida; da exploração escravagista; da despudorada instauração do direito do mais forte, impingido soba insígnia da ordem. É a marca do abuso do poder, a marca do fascismo. É a realização de um sonho demencial, em que um manda, ninguém mais pensa, todos andam sempre em fila, todos obedecematé a morte, todos dizem sempre sim.

Por isso é bom, é importante que nesta nossa época de entusiasmos fáceis e canseira profunda seja erguido um monumento em Auschwitz: e deve ser uma obra ao mesmo tempo nova eperene, que possa falar hoje e amanhã e entre séculos, com linguagem clara, a quem quer que o visite. Não importa que seja“bonito”: não importa se chegar às raias do retórico, se incidir nele. Não deve ser utilizado para fins partidários: deve ser um monumento-advertência que a humanidade dedica a si mesma, para que sirva de testemunho, para que repita uma mensagem não nova na história, mas esquecida com demasiada frequência: que o homem é e deve ser sagrado para o homem, em qualquer lugar e sempre.

La Stampa, 18 jul. 1959.

*É permitida a reprodução desde que citada a fonte.  

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