Obras ajudam a compreender a riqueza da cultura e das tradições chinesas

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terça-feira, 31 de maio de 2016

Por Katia Saisi

Com tradução e comentários do sinólogo Giorgio Sinedino, nova edição do “Dao De Jing” permite visão crítica de um dos pilares do pensamento chinês

O “Dao De Jing” (ou “Tao Te Ching”), coletânea de provérbios chineses, é a raiz de tradições religiosas e filosóficas milenares como o Taoísmo e o Zen. Nos últimos séculos, após inúmeras traduções, despertou o interesse do público ocidental. A Editora Unesp lança agora tradução inédita com um enfoque particular: tornar mais compreensível a complexa cultura da China possibilitando uma visão de como seu povo percebe o mundo. Mas, além deste lançamento, aproveitamos a oportunidade para resgatar outros títulos de seu catálogo que nos ajudam a compreender a riqueza da cultura oriental.

Dao De Jing

Laozi, o possível autor do “Dao De Jing”, é um dos três principais entre os primeiros pensadores chineses. Ele, ao lado de Confúcio e Mozi, criou as visões de mundo e atitudes que influenciarem a cultura  chinesa por milênios. Há relatos de que teria sido mestre de Confúcio, mas enquanto o primeiro se tornou o paradigma do homem de ação, o tradicionalista apegado aos ritos, o segundo simboliza o homem contemplativo, o quietista voltado para os arcanos da natureza. 

Nesta edição (579 páginas, R$ 128), seu texto de apenas 5 mil palavras (caracteres) é acompanhado dos comentários de Heshang Gong, o Senhor às Margens do Rio, personagem dono de uma biografia tão mistificada quanto à do próprio Laozi. Trata-se de uma versão integral de um dos três textos-base para a interpretação do “Dao De Jing”. Foram também traduzidos os trechos mais relevantes do prefácio de Ge Xuan (164 –244) e breves notas biográficas escritas por Sima Qian (145 a.C. – 90 ou 85 a.C.), o primeiro grande historiador chinês. 

Já a apresentação do sinólogo e diplomata brasileiro, Giorgio Sinedino, intitulada “Laozi e a história das ideias na China”, introduz ao leitor o “Dao De Jing”, e o guia pelo labirinto de crenças, práticas e instituições ligadas a este fenômeno complexo ao longo da antiga história daquele país. O resultado é uma versão crítica que, em seu conjunto, como escreve Sinedino, pode “revelar verdades pelo menos tão sólidas quanto a opinião dos mercados, as efemérides da imprensa ou os axiomas do direito e da economia”. 

Se para o leitor ocidental, o pensamento chinês antigo parece intrinsecamente autoritário, elitista e xenófobo, o “Dao De Jing” mostra que esta é uma verdade parcial. Acaba-se por descobrir que “o pensamento chinês está orientado a criar um tipo de ecumenismo de natureza não muito diferente do Ocidente globalizado – sem pluralismo, contudo”.

Os Analectos

Também traduzido por Giorgio Sinedino, esta edição de “Os Analectos” (640 páginas, R$ 118) procura resgatar o pensamento original de Confúcio, que viveu entre 551 e 479 a. C. e ainda hoje influencia a sociedade chinesa. Com tal objetivo, a obra foi traduzida, de forma pioneira, diretamente do chinês arcaico para o português, e inclui os comentários clássicos acerca dos aforismos.

Esses comentários não constam das edições em português, embora sejam guias obrigatórios para todos os leitores chineses: escritos há vários séculos e em diferentes épocas, são fundamentais para a compreensão dos aforismos. Complexos até mesmo para leitores já versados em Confúcio, esses pequenos textos, sobre os quais cabem olhares múltiplos, contemplam diversas possibilidades semânticas, como demonstram as diferentes interpretações dos próprios comentadores tradicionais.

Os comentários que integram esta obra foram cuidadosamente compilados de fontes variadas pelo tradutor e ainda adaptados, de modo a facilitar a compreensão pelo leitor contemporâneo. Também para tornar a leitura mais fluente, foram editados na sequência dos aforismos, e não em notas de rodapé. 

“Os Analectos”, livro que condensa as ideias de Confúcio, representam uma visão de mundo e uma espécie de código ético e de conduta que foi fundamental para a vida familiar e pública na China antiga e continua presente em vários aspectos da sociedade chinesa de nossos dias.

Segundo alguns, a atualidade da obra é atestada inclusive pela pujança contemporânea da China. Essa afirmação é abraçada por Sinedino, que identifica no pensamento de Confúcio a defesa da livre competição, algo visível na microeconomia chinesa. Para ele, inclusive, “a liderança da economia pelo estado na China não se deve ao comunismo, mas ao confucionismo”.

Antologia da poesia clássica chinesa

Esta coletânea bilíngue, em chinês e português, é, possivelmente, a mais abrangente já publicada na língua portuguesa de poesia da Dinastia Tang (618-907), a “idade de ouro” da literatura chinesa clássica. Reúne mais de 200 poemas de mais de 30 autores, incluindo algumas mulheres. 

Os três principais nomes da poesia daquele período – Li Bai, Du Fu, Wang Wei – estão representados na obra, que também contempla traduções de escritores como Bai Juyi, Meng Haoran, Li Shangyin, Du Mu, Liu Yuxi, Cen Shen, Wen Tingyun e Li He. Entre as autoras, estão presentes aqui trabalhos assinados por Li Ye, Xue Tao, Yu Xuanji. 

O livro (312 páginas, R$ 72) é uma contribuição relevante para o desenvolvimento dos estudos de literatura chinesa em países de língua portuguesa. Com uma introdução histórica e de teoria literária, notas explicativas e resenhas sobre os autores de elaboradas pelos tradutores e estudiosos Ricardo Primo Portugal e Tan Xiao, baseia-se, principalmente, nas antologias mais consagradas – 300 Poemas da Dinastia Tang (século XVII), e Poemas de 1000 mestres (século XIII). Além disso, considera os principais textos de referência da tradição da tradução em português, inglês, francês e espanhol. A introdução e as notas abordam ainda questões da teoria da tradução, apresentam aspectos estruturais da poesia clássica chinesa, expõem os conceitos de paralelismo, tradução-recriação, tradução estrangeirizante, com base em aportes teóricos de Walter Benjamin, Roman Jakobson, Haroldo de Campos, François Cheng, Ezra Pound, Octavio Paz.

No princípio da Dinastia Tang, as pesquisas formais e estudos linguísticos haviam alcançado alto grau de refinamento na China. Em consequência do desenvolvimento próprio da ambiência literária ou de necessidades criadas pelos exames imperiais, que demandavam a sistematização de conteúdos, chegou-se, à época, a uma codificação e definição precisas das formas em uso, as quais constituiriam os modelos clássicos, que predominaram até o advento do Modernismo, nas primeiras décadas do século 20. O livro ganhou o segundo lugar do Prêmio Jabuti 2014 na categoria Tradução.

Poesia completa de Yu Xuanji

Personagem rebelde de peças de teatro, contos, romances chineses e estrangeiros; poetisa renovadora; libertina difamada por séculos; monja taoista e cortesã dotada de consciência feminista precursora em relação à modernidade. As variadas e contraditórias adjetivações que caracterizam Yu Xuanji (844-869) dão pistas de sua destacada contribuição para a literatura chinesa.

“Poesia completa de Yu Xuanji” (144 páginas, R$ 30) traz a primeira versão para a língua portuguesa de seus versão. Em edição bilíngue, reúne 48 poemas e cinco fragmentos da artista, apresentada em notas realizadas a quatro mãos, por Ricardo Primo Portugal, poeta e diplomata e Tan Xiao, que já trabalhou como intérprete e tradutora na Embaixada do Brasil em Pequim. Os textos unem literatura, cultura e tradições. 

Katia Saisi, colaboradora do O DIA de Marília é jornalista, mestre em Comunicação e doutora em Ciências Sociais 

Artigo publicado no dia 31 de maio de 2016, nas páginas 8 e 9 do jornal O Dia de Marília.