Para conhecer a filosofia de David Hume

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terça-feira, 19 de janeiro de 2016

ARTIGO PUBLICADO ORIGINALMENTE NO JORNAL O DIA, DE MARÍLIA, EM 19/01/2016, PÁGINAS 8 E 9. 

David Hume desvenda a alma inglesa em obra histórica sob a ótica filosófica

Por Katia Saisi*

Um dos maiores e mais influentes filósofos britânicos, Hume articula fatos e tramas  da história inglesa, analisando profundamente seus atores, valores e instituições


É certamente curioso para o leitor de hoje saber que o grande êxito editorial que assegurou a fama e a segurança financeira ao filósofo David Hume foi sua “História da Inglaterra” (469 páginas, R$ 78), cuja primeira edição em português é agora lançada pela Editora Unesp. 

Tal sucesso entre os contemporâneos deve-se em parte ao contexto político do século XVIII, mas cabe destacar também seu talento como historiador e uma dedicação que o levou à leitura de farta documentação, entre tratados, atas, convenções e leis, e de obras consagradas, de autores clássicos, como Tácito, e modernos, como Robert Brady. Isso sem contar seus méritos literários que adicionam prazer à leitura e o fato de que se trata de uma obra que igualmente merece ser estudada como um trabalho de filosofia.

Com o intuito de se tornar o “primeiro grande historiador a escrever em língua inglesa”, Hume oferece descrições detalhadas e observações perspicazes dos eventos, assim como Montesquieu, Voltaire, Gibbon, Ferguson e Robertson, mas sua busca é por leis gerais enraizadas em princípios da natureza humana. Aplicando seu ceticismo moderado ao estudo da história, explicita as causas que tornaram a Inglaterra a maior nação do século XVII ao lado da França, articulando, desde a filosofia, tramas e os conflitos entre autoridade e liberdade, desde a conquista da ilha por César até a revolução de 1688.  

O trabalho original de Hume foi publicado em seis volumes durante os anos de 1754 e 1761. Deste trabalho monumental, o filósofo Pedro Paulo Pimenta selecionou textos capitais que oferecem a visão panorâmica sobre o desenvolvimento político e social da Inglaterra, além de fornecer valiosos elementos para a compreensão de seu pensamento moral e político. Material que permite não somente acompanhar o processo de formação histórica da Inglaterra, mas também entender como este contexto específico moldou a natureza humana, gerando costumes, manifestações científicas e artísticas e uma economia específicas. 

David Hume (Edimburgo, 7 de maio de 1711– Edimburgo, 25 de agosto de 1776) foi um filósofo, historiador e ensaísta escocês da maior importância para o iluminismo. Considerado um dos três maiores empiristas britânicos, juntamente com John Locke e George Berkeley, opôs-se particularmente a Descartes e às filosofias que consideravam o espírito humano desde um ponto de vista teológico-metafísico. Assim Hume abriu caminho à aplicação do método experimental aos fenômenos mentais.  

Outros títulos de Hume



Tratado da Natureza Humana

Fundamental para o entendimento do pensamento do filósofo e historiador escocês, o “Tratado da natureza humana” (760 páginas, R$ 96), publicado em 1739-1740, quando o autor contava com 27 anos, é uma das mais importantes obras da história da Filosofia ocidental. Ajuda a compreender como Hume - partindo da filosofia de Francis Bacon e do empirismo de John Locke - concluiu pelo ceticismo, fazendo a crítica da filosofia tradicional e estabelecendo ideias importantes para a formulação da filosofia de Kant.

Dividida em três livros, a obra analisa de maneira cética e singular os princípios da natureza humana, aplicando aos problemas éticos e à filosofia moral o raciocínio experimental que Newton implantou no estudo da natureza física. Vemos como Hume - partindo da filosofia de Francis Bacon e do empirismo de John Locke - chega ao ceticismo, levando o empirismo a níveis altíssimos e fazendo a crítica da filosofia tradicional. É o estabelecimento deste novo conjunto de ideias que leva, por exemplo, Kant à formulação de sua filosofia (o autor alemão costumava dizer que Hume o despertou de seu “sonho dogmático”).

O Livro I aborda as percepções primordiais da mente humana, divididas em impressões e ideias. Segundo Hume, as impressões chegam à mente de maneira forte e violenta, como as sensações, paixões e emoções. Já as ideias são o reflexo e as imagens dessas impressões. 

O Livro II retrata as paixões, principalmente as dualidades orgulho-humildade, amor-ódio e vício e virtude. Após as reflexões, o pensador discorre sobre o livre-arbítrio e a curiosidade, chamada de amor à verdade e considerada a fonte de todas as investigações. 

E o Livro III trata da moral. Apesar de ser considerado pelo filósofo como independente dos outros tomos, esse trecho utiliza-se de toda a preparação efetuada anteriormente, discorrendo sobre os direitos civis, governos e sistemas internacionais, entre outros termos, relacionando a moral com o sentimento de prazer.

Investigações sobre o entendimento humano e sobre os princípios da moral


Após finalizar seu ambicioso “Tratado da natureza humana”, Hume resolve reescrever o trabalho em uma linguagem mais acessível, mantendo o que considerava ser os tópicos essenciais de sua filosofia. Surgem então “Investigação sobre o entendimento humano” e “Investigação sobre os princípios da moral”, dois títulos que relançados no Brasil com tradução  de José Oscar de Almeida Marques, e em um mesmo volume (440 páginas, R$ 58).

Nas Investigações sobre o entendimento humano, Hume utiliza o método experimental estabelecido por Newton nos “Principia” para o seu estudo da natureza humana. Versão abreviada da primeira parte do “Tratado da natureza humana” (“Do Entendimento”), discorre sobre como fundamentar racionalmente toda a atividade humana e estabelece o conceito de que o conhecimento deriva das “ideias e expectativas acerca do comportamento das coisas e sua corroboração pelas impressões que efetivamente recebemos delas”, como explica Almeida Marques na nota de introdução a esta edição. 

Investigações sobre os princípios da moral é considerado pelo próprio autor como o seu melhor texto. Trata-se da aplicação do método empírico newtoniano aos problemas éticos e filosofia moral. Rejeitando um padrão transcendente do que é bom ou mau, procura derivar as “práticas morais” dos comportamentos e sentimentos que nossas ações suscitam e de suas consequências para o ambiente social. 

Estas Investigações – que, ao serem reunidas em um único volume, possibilitam uma melhor apreensão do caráter unitário da filosofia de Hume – são a melhor maneira tanto para aprofundar-se (o próprio autor considerava-as a verdadeira expressão de seu pensamento filosófico), como para iniciar-se neste universo, já que contam com estilo mais direto e a ausência da prolixidade argumentativa.

História natural da religião


A tendência em acreditar em poderes que estão além de sua compreensão faz parte, segundo David Hume, da natureza humana. Esta constatação o faz pensar em uma narrativa histórica e filosófica não determinada pela Ideia de Deus, mas como manifestação do engenho humano. Se com Investigações sobre o entendimento humano – livro que despertou Kant de seu “sono dogmático” – Hume parte em busca de uma filosofia tão rigorosa e precisa quanto a física newtoniana, em “História natural da religião” (160 páginas, R$ 30) o filósofo escocês reflete sobre os efeitos das diferentes religiões sobre a moralidade e a tolerância. 

Este livro é uma profunda reflexão sobre os princípios que dão origem à crença original e como o contexto histórico, cultural e social influencia e é influenciado pelas disposições morais e filosóficas do ser humano. Ou seja, quer encontrar justamente as “origens e das causas que produzem o fenômeno da religião, dos seus efeitos sobre a vida e a conduta humanas, e das variações cíclicas entre o politeísmo e o monoteísmo”, como nota Jaimir Conte na apresentação a esta tradução. 

Em um processo análogo ao desenvolvimento social, uma divindade principal, pouco a pouco, começa a predominar, recebendo cada vez mais atenção e deixando as demais em segundo plano. Aqui, ainda encontramos a visão antropomorfa, que penetra nos rituais e práticas católicas e maometanas, mas já é dominante a concepção de um deus uno, infinito e totalmente espiritual. Hume reflete sobre como cada modo de conceber a divindade altera as disposições sociais (o “politeísmo, ao alegar que não há uma só verdade sobre um deus único, é mais tolerante que o monoteísmo”) e filosóficas (“o monoteísmo atrai facilmente a defesa filosófica mas, por sua vez, torna a filosofia sua serva”). 

Seu percurso o leva a perguntar “o que há de mais puro do que certo grau de moral incluído em certos sistemas teológicos? O que há de tão corrupto quanto certas práticas às quais estes sistemas dão origem?”. Dúvidas que devemos manter em toda investigação sobre a necessidade vital do homem de explicar a natureza inexplicável, ainda mais em um momento em que a religião volta a definir os rumos dos debates geopolíticos mundiais e a intolerância ao Outro assume um papel fundamental na formação das identidades culturais. Afinal, se a compreensão de que “o bem e o mal se misturam e se confundem universalmente, assim como a felicidade e a miséria, a sabedoria e a loucura, a virtude e o vício” era algo audaz para o século XVIII, temos que suas implicações ainda não foram totalmente absorvidas pelo homem contemporâneo.