Confira o trecho de 'Diante do extremo', de Todorov

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segunda-feira, 27 de janeiro de 2020

De todas as instituições do século XX, certamente os campos de concentração e de extermínio estão entre as mais sombrias e assustadoras, justamente por nos revelar uma face da humanidade até então desconhecida ou ao menos ignorada: aquela capaz de organizar racional e institucionalmente o extermínio em massa de seus integrantes. Mas, diante desse cenário adverso, havia espaço para a dimensão moral na convivência? Para Tzvetan Todorov, em Diante do extremo, a resposta é sim. 

Por ocasião do Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto (27 de janeiro), leia o trecho do prólogo Viagem a Varsóvia: Visitas de domingo e Varsóvia em 1944 (páginas 11 a 26) de Diante do extremo, de Todorov. O livro e outros títulos relacionados estão com 30% de
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VIAGEM A VARSÓVIA*

Visitas de domingo

Tudo começou bem simplesmente, em novembro de 1987. Um amigo nos convidara para mostrar-nos alguns monumentos não tombados de Varsóvia; aceitamos de imediato, contentes por escapar do programa em que o colóquio oficial nos engessava, razão ou pretexto para nossa presença naquela cidade. Essas eram as circunstâncias que nos levaram, num domingo ao meio-dia, à igreja em que o padre Popieluszko oficiara – esse padre próximo do Solidariedade, assassinado pelos serviços secretos – e onde agora se encontrava sua tumba. Havia com o que se impressionar, de fato. O pátio da igreja já era como o enclave de um país dentro de outro, transbordando de bandeirolas e de cartazes que não se viam em nenhuma outra parte. No interior, no semicírculo do coro, uma exposição apresentava a vida do supliciado; cada vitrina, cada etapa de sua carreira, era como uma estação de sua via crucis. Viam-se imagens de multidões ou de encontros individuais,em seguida um mapa do estado-maior mostrando seu último percurso; por fim, uma foto da ponte da qual ele tinha sido lançado no rio. Pouco além, um crucifixo com Popieluszkono lugar de Cristo. Fora, a lápide de pedra e, em torno dela, um traçado do território da Grande Polônia (estendendo-se por sobre a Lituânia e a Ucrânia) desenhado por pesadas correntes que bordejam as pedras maciças. Em tudo, uma densidade de emoção de dar um nó na garganta. Ao redor, a multidão sem fim: o cerimonial acabara, então esperamos muito tempo para que a maré humana se espalhasse para fora e para que pudéssemos entrar, mas, quando o fizemos, constatamos que, como um milagre, a igreja continuava cheia de gente.

De imediato, não pude evitar comparar essa situação com aquela de nossa visita precedente, nessa mesma manhã, ao cemitério judeu de Varsóvia. Estávamos sós. Mal havíamos deixado a alameda central e já mergulhávamos numa confusão indescritível: algumas árvores haviam crescido entre as tumbas,as ervas daninhas as haviam invadido, apagando os limites e as separações; por sua vez, as lápides estavam enfiadas na terra, seguindo os caixões. Subitamente compreendíamos, por contraste, que os outros cemitérios eram lugares de vida, dado que o passado neles permanecia presente, enquanto ali as tumbas, petrificação da lembrança, por sua vez morriam. O extermínio dos judeus durante a guerra, lembrado por alguns monumentos na entrada do cemitério, tivera esse efeito adicional: matar pela segunda vez os mortos anteriores, aqueles do século XIX; a partir de então, não houve mais memória que eles pudessem habitar. Reinava um enorme silêncio, e apesar disso as vozes não circulavam: mal havíamos entrado no cemitério, perdemo-nos uns dos outros; as árvores que haviam crescido entre os túmulos impediam que nos víssemos, e nossos chamados ficavam sem resposta. Depois nos encontramos, também subitamente, e voltamos a vaguear em silêncio, parando diante de monumentos funerários que brotavam dessa floresta.

Havia uma continuidade entre essas duas metades da manhã, uma continuidade da emoção, e também um contraste que eu percebia confusamente, mas não conseguia formular.Voltando a Paris alguns dias depois, eu continuava a colidir com uma inquietação indefinível, nascida dessa incompreensão. Para sobrepujá-la, quis ler alguns livros que contam histórias polonesas. Durante minha estadia falaram-me, em duas ocasiões distintas, de duas obras que poderiam me interessar. Será que a chave de meu enigma, do ligeiro mal-estar criado em mim pelas duas visitas, poderia ser encontrada nesses livros, mencionados em circunstâncias diferentes, mas no decorrer da mesma viagem? Fui procurá-los, então, e neles mergulhei. Eles falavam de dois acontecimentos da história recente, a insurreição do gueto judeu de Varsóvia, em 1943, e a insurreição de Varsóvia, em 1944. Pareceu-me então que o passado poderia esclarecer o presente; desejei saber mais, e busquei ainda outros textos que descrevessem os mesmos fatos. Eis o que encontrei.

Varsóvia em 1944

O primeiro dos dois livros se chama Varsovie 44. L’insurrection [Varsóvia 44. A insurreição]. Ele é composto por entrevistas, conduzidas por Jean-François Steiner, com participantes da sublevação do verão de 1944, ou com testemunhas, ou com peritos da história polonesa, tudo entremeado por diversos documentos da época e de excertos de obras literárias. Isso forma uma extensa montagem de textos que gira em torno da seguinte questão: como foi tomada a decisão de se insurgir? Por meio da minuciosa narrativa da escalada das paixões e do encadeamento dos acontecimentos, apreendi uma reflexão sobre o heroísmo. Os insurgentes seguramente eram heróis; contudo, além disso, certo fascínio pelos valores heroicos exercido sobre seus espíritos parece ter desempenhado um papel decisivo na própria explosão da revolta e em seu desenrolar. Esse espírito heroico parecia ter agido como uma droga, mantendo os combatente sem estado de exaltação, ajudando-os, assim, a suportaras mais duras provas.

Mas o que é o heroísmo?, questionava-me enquanto lia. Em relação à grande antinomia subentendida pelas condutas humanas, a da necessidade e a da liberdade, ou ainda a da lei impessoal e da vontade individual, o heroísmo se encontra sem dúvida do lado da liberdade e da vontade. Numa situação em que, aos olhos das pessoas comuns, não há escolha, em que se deve apenas curvar-se às circunstâncias, o herói se insurge contra essas aparências e, por um ato que justamente escapa ao ordinário, consegue coagir o destino. O herói é o contrário do fatalista, ele se encontra do lado dos revolucionários e em oposição aos conservadores, dado que não tem nenhum respeito particular pelas regras já estabelecidas e acredita que todo objetivo pode ser alcançado, desde que se seja dotado de uma vontade suficientemente forte.

Os dirigentes da insurreição de Varsóvia, os responsáveis pelo seu desencadeamento, agem em conformidade com esse espírito heroico. Segundo as lembranças dos sobreviventes, Okulicki, o chefe das operações (cujo destino será particularmente trágico: ele morrerá não pelas balas hitleristas, como teria desejado, mas nas prisões stalinistas, que ele temia acima de tudo), desde o início já se punha sob a ótica do herói. “Ele queria que as coisas fossem como devem ser, e não aceitava que se dessem de outra forma.” Seu interesse pelo dever-ser é muito maior, em sua visão, que o próprio ser. O mesmo ocorre com Pelczynski, chefe do estado-maior do Exército do Interior (aquele que lidera a insurreição, ligado a Londres, e não a Moscou, assim como o pequeno Exército Popular): ele faz parte das testemunhas interrogadas por Steiner trinta anos depois. “Sabíamos que a Polônia estava condenada, mas não podíamos aceitar tal veredito”, recorda ele. Por sua vez, o general Bor-Komorowski, comandante do Exército do Interior, lembra-se de que, na véspera dos acontecimentos, havia afastado por completo de sua mente a ideia de que a insurreição não pudesse ter sucesso: as coisas serão como devem ser. Quando, após o início dos combates, foi anunciado ao coronel Monter (comandante militar para a região de Varsóvia) que um bairro havia caído nas mãos dos alemães, ele retrucou: “Não aceito essa afirmação!”. Eis a característica do herói: ele pode saber que seu ideal é irrealizável (a Polônia não pode escapar – por sua posição no mapa, assim como pelas forças militares presentes – à ocupação soviética); contudo, como o deseja acima de tudo, usará todas as suas forças para atingi-lo.

Pelczynski erige esse princípio heroico como uma espécie de código de honra militar: “Para um soldado, toda ordem é executável, se ele tiver vontade”. Não há que se distinguir entre ordens razoáveis e absurdas, entre aqueles que dão e os que não dão conta da situação, mas apenas entre a presença ou a ausência de uma dose suficiente de vontade. Tal era, ao que parece, a tradição militar polonesa. Um general de antes da guerra explicara a seus subordinados que a falta de meios materiais sempre podia ser compensada por um esforço da vontade, pela capacidade dos combatentes de se sacrificar. “Façam uma equalização entre a munição e o sangue polonês e, sempre que aquela lhes faltar, substituam-na por este”. E foi mesmo dessa maneira que reagiu Okulicki: um pedaço de pau, uma garrafa bastarão contra os tanques alemães, disse ele, desde que estejam nas mãos de poloneses decididos. Também Pelczynskidirá mais tarde: “Vimos que eles nos eram superiores no plano material. Entretanto, […] os poloneses tinham a vantagem de uma moral melhor”. Além disso, os poloneses não seriam os únicos a ter escolhido esse caminho: “Quando o povo de Paris marchou sobre a Bastilha, não se deteve para contar seus porretes”.

Os heróis preferem então, é o mínimo que podemos dizer, o ideal ao real. Durante a insurreição de Varsóvia, esse ideal carrega diversos nomes. Poderíamos afirmar que eles lutam para que Varsóvia viva (livre). Porém, com frequência, eles sobem mais um degrau e chamam esse ideal de “pátria”. É preciso lutar, diz Okulicki, “sem dó de nada nem de ninguém, tendo no fundo do nosso coração um único pensamento: a Polônia”. Não basta dizer que o ideal é a nação, pois ela tanto pode ser identificada a um conjunto de seres humanos, meus próximos, meus compatriotas, quanto a um certo número de lugares, de caminhos, de casas; mas essa interpretação é explicitamente afastada por Okulicki: não se pode, ele declara, hesitar em desencadear a insurreição “sob o pretexto de salvar algumas vidas humanas ou algumas casas”.  Aqui não se trata de salvar os varsovianos, mas a ideia de Varsóvia, nem os poloneses individuais, nem as terras polonesas, mas uma abstração chamada Polônia. “Para nós, disse outro chefe militar da insurreição, a Polônia era objeto de um verdadeiro culto. Nós a amávamos mais que a um simples país: como a uma mãe, uma rainha, uma virgem”. O país é deificado (e feminizado) – para tanto, foi preciso afastar muitos traços reais.

Não é, portanto, o povo que se deve salvar, mas algumas de suas qualidades: sua vontade de liberdade, seu desejo de independência, o orgulho nacional. “Se não lutarmos, afirma Pelczynski, a nação polonesa corre o risco de um terrível desmoronamento moral.” Em outra ocasião, ele declara que “uma vez que era impossível defender os valores materiais, devíamos nos ater aos valores morais”. Sosnkowski, comandante-chefe de Londres, também afirma (numa carta ao Primeiro Ministro Mikolajczyk): “Na vida das nações, os gestos de desespero são por vezes impossíveis de serem evitados, tendo em vista os sentimentos compartilhados pela população, o simbolismo político desses gestos e o significado moral de que se revestem para a posteridade”.  Os indivíduos devem morrer para que os valores morais e políticos sobrevivam. Isso também quer dizer que alguém deve definir o que é moral e o que não o é, e julgar, pelo viés da História e do futuro, qual a marcha a ser seguida no presente.

Contudo, a abstração representada pela “Polônia” nem sempre basta: a própria Polônia deve ser imolada aos pés de um ideal ainda mais afastado: o Ocidente, o qual, por sua vez, encarna a civilização, ou até mesmo o “Homem”. Os russos representam a barbárie, e a Polônia é o último bastião passível de detê-los. Assim, torna-se possível sacrificar um número indeterminado de vidas de homens em nome da defesa do Homem. Sosnkowski expressa (numa carta a Bor-Komorowski) o desejo de transformar a questão polonesa em “problema para a consciência mundial, um banco de ensaio para o devir das nações europeias”. O próprio Bor rememora: “Pensávamos que a luta para salvar Varsóvia devia suscitar uma resposta do mundo”. Okulicki justifica a insurreição da mesma maneira: “Era preciso um esforço que despertasse a consciência mundial”. A insurreição é um sacrifício cujo destinatário pode ser descrito como algo que se distancia cada vez mais – Varsóvia, a Polônia, o Ocidente, o mundo –, mas que continua sempre a ser impessoal: sacrificamo-nos por ideias, não por seres. No final das contas, somente o absoluto é suscetível de satisfazer esses espíritos heroicos. 

Na vida do herói, algumas qualidades humanas são mais valorizadas que outras. A primeira talvez seja a fidelidade a um ideal – fidelidade apreciada em si mesma, independentemente da natureza desse ideal (por isso podemos admirar um inimigo herói). Nesse sentido, o herói é o contrário do traidor: ele jamais trairá, quaisquer que sejam as circunstâncias (sem dúvida, um resíduo do código de honra cavalheiresco). Dessa forma Okulicki, quando preso e interrogado pela polícia secreta soviética, permanecerá em silêncio, o que sem dúvida implica também grande capacidade de resistência física. O herói é solitário, por duas razões: de um lado, ele combate mais por abstrações que por indivíduos; de outro, a existência de seres próximos a ele o tornaria vulnerável. A educação de um herói é um aprendizado da solidão e também, é claro, de um endurecimento da coragem. O ato corajoso é mesmo a manifestação mais direta do heroísmo. Okulicki ainda aqui pode servir de exemplo: durante uma batalha, ele se oferece como voluntário para atacar o abrigo de uma metralhadora inimiga; carregado de granadas, ele se lança no campo descoberto. A coragem não é então nada além que a capacidade de arriscar sua vida para atingir um objetivo. A vida não é o valor supremo e pode mesmo ser sacrificada a qualquer momento. Quando o objetivo está ausente ou é insignificante, a bravura se transforma em bravata: arrisca-se à morte sem tirar desse ato um resultado qualquer. Assim, Okulicki detesta se esconder: “As bombas e os obuses caíam por todo lado, as raras pessoas que cruzávamos avançavam aos saltos, de abrigo em abrigo; ele andava pelo meio da calçada, como se não se desse conta do perigo”. Reciprocamente, a falta de coragem é aquilo que, nos outros, os heróis mais desprezam.

O herói está então pronto para sacrificar tanto sua vida quanto a dos outros, se esse sacrifício servir ao objetivo pretendido. Mesmo essa restrição cai por terra no instante em que se decide focar num destinatário tão distante como a História ou a humanidade: as quais jamais correriam o risco de vir desmentir as esperanças heroicas. Esse é o motivo pelo qual os chefes militares da revolta decidiram começá-la “qualquer que fosse o preço”. Na ausência de um destinatário concreto, o combate se torna um fim em si mesmo, pois é a prova irrefutável do espírito heroico daqueles que o levam a cabo. É preciso lutar, “mesmo que o combate que nos espera seja desesperador”: esse já era o preceito do primeiro comandante do Exército do Interior, Grot-Rowecki. “Seremos todos massacrados, prognostica um dos participantes no momento dos acontecimentos, mas ao menos teremos combatido.” E Pelczynski, em retrospecto, comentou: Era nosso dever lutar. Era a única coisa que contava, a meu ver”.

Okulicki se entrega a cálculos mais elaborados: se a revolta for desencadeada e os russos ajudarem os insurrectos, a aposta está ganha. Contudo, se eles não intervierem e deixarem os alemães massacrarem-nos, ela também não será perdida: Varsóvia será arrasada, muitos poloneses morrerão, mas, forçosamente, a perfídia soviética será escancarada, pois as potências ocidentais iniciarão a Terceira Guerra Mundial, contra os russos, e dos escombros nascerá uma nova Polônia… Suas predições semostraram em parte justas: o exército russo não apoiará essa revolta, que é mais dirigida contra ele que contra os alemães; estes sufocarão a rebelião, matando 200 mil pessoas, deportando 700 mil e arrasando Varsóvia. Contudo, a Terceira Guerra Mundial não ocorrerá, e a Polônia ficará tão submetida à União Soviética quanto o teria se a revolta não tivesse acontecido – portanto, o objetivo não foi atingido. Mas, se o fosse, o preço pago teria sido justificado? Quais são os atos que é preciso realizar “qualquer que seja o preço”?

Os dirigentes da rebelião agem como se obedecessem ao preceito: é melhor ser morto que vermelho (comunista). Eles acreditam estar diante destas alternativas: revoltar-se e morrer, ou permanecer vivos e se submeter – e preferem a primeira. Okulicki declara: “Para um polonês, mais vale morrer que ser covarde”; e alguém disse a respeito de Pelczynski: “Uma vez que ele subitamente percebeu que só tinha como alternativas se render ou morrer, escolheu morrer”. Bor-Komorowski também prefere a ação, mesmo que condenada ao fracasso, à espera passiva. Monter traduz esse estado de espírito numa ordem dirigida aos defensores de Mokotow (bairro de Varsóvia), no 56º dia de combate: “É proibido retirar-se”.  Tal atitude heroica exige respeito. Mas ao mesmo tempo podemos nos perguntar se a alternativa assim formulada corresponde apropriadamente às possibilidades reais. “Vermelho” não se contrapõe a “morte”, mas somente a “branco”, “marrom” ou “negro”; e somente os vivos têm uma cor. Um dos combatentes que não concordava com o desencadeamento da rebelião observa: “Se um dia não pararmos todos de querer morrer pela Polônia, em breve não haverá sequer um polonês para habitá-la”. E uma vez mortos os heróis da revolta, Varsóvia se tornou, apesar de tudo, “vermelha”.

De fato, para o heroísmo, a morte tem um valor superior ao da vida. Somente a morte – a sua própria, assim como a dos outros – permite atingir o absoluto: sacrificando sua vida, prova-se que se dá mais valor ao seu ideal que a ela. “No nível de exigência absoluta em que o desespero os tinha levado, não havia outra solução senão a morte”.  A vida – confrontada com as exigências do absoluto – aparece necessariamente como uma espécie de mistura pouco satisfatória. “Os heróis não são feitos para viver”, constata uma testemunha. Entretanto, poderíamos nos perguntar se vida e morte não se opõem também de outra maneira. Em certas circunstâncias excepcionais, e a rebelião de Varsóvia é uma delas, a morte pode ser compreensível, em particular se acreditamos na ressurreição das almas, mas mesmo que não: a morte permanece uma desconhecida, e por isso mesmo fascina; perder a vida é colocar toda sua coragem em um único gesto. A vida pode exigir certa coragem todos os dias, a todo instante; ela também pode ser um sacrifício, mas que nada tem de resplandecente – se devo sacrificar meu tempo e minhas forças, sou obrigado a permanecer vivo. Nesse sentido, viver se torna mais difícil que morrer.

Aqueles que, na época da insurreição, se opõem ao seu projeto, não o fazem em nome de um slogan que seria a inversão pura e simples do princípio heroico; eles não dizem: melhor vermelho que morto, mais vale ceder que se sacrificar. Apesar disso, é o que seus adversários queriam que se acreditasse.Tendo ouvido as objeções, “Okulicki começou por nos tratar como covardes, dizendo que emperrávamos a decisão porque não tínhamos a coragem de lutar”. Assim, ninguém pode protestar. “Praticamente não ousávamos criticar qualquer proposição, por medo de passarmos por covardes ou traidores.” Essa última fórmula é reveladora: podemos agir como heróis por medo de passarmos por covardes. O herói não está forçosamente a salvo do medo, mas este é de uma espécie particular:ele tem medo de ter medo, e este sentimento domina e dissipa todos os outros. 

Aqueles que não concordam com Okulicki não optam então pelo outro termo da mesma alternativa, mas por uma alternativa diferente. Um deles diz, diante de Steiner, que a escolha real era entre “um ato político e militar sério” e “um suicídio perpetrado pelos chefes irresponsáveis que se escondiam na morte gloriosa por não terem a coragem de afrontar as dificuldades da vida”. Para ele, a coragem de viver é mais rara – e mais preciosa – que a coragem de morrer. E outro introduz o termo de “responsabilidade”. A política e a guerra não devem ser conduzidas em nome daquilo a que se chamou de ética da convicção, pois elas não são questões de princípio: não basta acreditar em algo para que sua aplicação seja benéfica para toda a comunidade. Ao contrário, é preciso prever as consequências: levar em conta o desenrolar real, e não somente o desejado, dos acontecimentos. A palavra “responsabilidade” encontra aqui seu sentido primeiro: um comandante responde pela vida ou pelo bem-estar de seus comandados; e, ao mesmo tempo, responde aos apelos provenientes de múltiplas fontes. 

O mundo dos heróis – e é provavelmente aí que reside sua fraqueza – é um mundo unidimensional, que só comporta dois termos opostos: nós e eles, amigo e inimigo, coragem e covardia, herói e traidor, preto e branco. Esse sistema de referências convém a uma situação orientada para a morte, mas não àquelas da vida. Em Varsóvia, em 1944, não são apenas as forças dobem e do mal que se confrontam. Há os russos e os alemães, o Exército do Interior e o Exército Popular, o governo no exílio e a população civil. Numa situação tão complexa quanto essa,a melhor solução – mas que no caso, e infelizmente, é apenas a menos pior – passa mais pela escuta atenta de todos que pela fidelidade inabalável ao seu próprio ideal. Nesse sentido, os valores da vida não são absolutos: a vida é diversa, toda situação é heterogênea; assim, as escolhas feitas são resultado não de concessões ou de compromissos covardes, mas de uma consideração dessa multiplicidade. 

Essa atitude não heroica, no entanto, tem um inconveniente: ela não serve às narrativas, ou pelo menos àquelas de cunho clássico. Ora, a função narrativa é indispensável em toda sociedade. De fato, os heróis se inspiram invariavelmente num exemplo livresco ou legendário, aprendido durante a juventude – e, no calor de sua ação, já preveem o efeito que ela produzirá quando for convertida em palavras: a narrativa do devir forma o presente. Okulicki reprova os outros planos de rebelião por “não serem suficientemente espetaculares”, enquanto o seu o é de tal forma que “o mundo inteiro falará sobre ele”. O boletim dos insurrectos declara, em 3 de outubro de 1944: “Ninguém na Polônia, nem em Varsóvia, nem no resto do mundo, poderá dizer que nos rendemos cedo demais”: o cuidado com as narrativas do devir está presente no próprio momento da ação. Os combatentes têm a consciência de escrever,segundo a fórmula consagrada, uma das páginas mais gloriosas da história da Polônia. Quando Pelczynski percebe que seu interlocutor, Steiner, não busca necessariamente glorificar os heróis, ele diz, indignado: “Se é dentro desse espírito que você pretende escrever esse livro, é melhor parar com nossas entrevistas”. As belas histórias devem ter heróis puros. Em contrapartida, os espíritos pragmáticos, aqueles que buscam se acomodar com as restrições do real, servem mal à arte narrativa. Mikolajczyk parece ter sido um personagem assim. “Ele não se achava nem Cristo, nem São Jorge, nem a Virgem”: como fazer de tal indivíduo o herói de uma história? 

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