Ao longo de dez caminhadas, o filósofo genebrino medita sobre si mesmo e sua vida
Durante sua vida, o filósofo genebrino Jean-Jacques Rousseau foi um entusiasta das caminhadas. Os longos passeios feitos por paisagens campestres as mais diversas se fazem presentes em múltiplas passagens de sua produção, sobretudo a de teor autobiográfico. Para ele, o ato de andar, além das disposições física e mental, trazem o “prazer de viver”. Ele chegou a escrever numa descrição de si no livro IX das Confissões: “só posso meditar enquanto caminho; mal paro e não penso mais; minha cabeça só funciona com meus pés”. Pois muitos esses pensamentos nascidos de suas caminhadas podem ser conhecidos em Devaneios do caminhante solitário, sua última obra, agora lançada em português pela Editora Unesp.
“Dentre os temas, talvez o que mereça maior destaque seja o do conhecimento de si como apaziguamento da alma, por traduzir o fim do processo daquele que chega, ao final de sua jornada, de posse de uma verdade: a apreensão de seu próprio percurso como processo de superação do ego narcísico exacerbado e sua dissolução na totalidade das experiências do mundo sensível, que o conduzem ao seu ser mais profundo, às puras sensações e às imagens que o circundam”, anota a tradutora do texto Jacira Freitas.
“A complexidade desse processo se explicita num duplo movimento. Ele é o mergulho no mais completo solipsismo e, ao mesmo tempo, movimento de abandono da pseudoindividualidade que, no decorrer de toda sua vida, o destitui de si mesmo, trazendo à sua percepção uma multiplicidade de detratores, inimigos reais ou imaginários, instituições sociais falhas de uma época marcada, no seu entender, pela decadência moral”, avalia Freitas. “O filósofo rebelde, que se crê incompreendido por seus contemporâneos, consagra as últimas linhas dessa obra aos devaneios de um espírito que se percebe mergulhado, para além dos limites do real, num sentimento de apenas existir.”
Ao longo de dez caminhadas, Rousseau medita sobre si mesmo tomando por base as lembranças de certos fatos de seu percurso de vida. Estuda os sentimentos que vivenciou, sempre procurando, a cada episódio narrado, reconstituir em seu espírito presente a felicidade outrora experimentada, até mesmo em momentos difíceis. Chega a dizer que, ao buscar ser feliz dessa maneira, vinga-se de seus perseguidores – apesar deles. De modo geral, no mapa das memórias de Rousseau, a trilha dos devaneios pela qual o seguimos é perpassada por diversos temas que singularizam sua trajetória, como a solidão, o envelhecimento, a mentira, seu trabalho intelectual, sua relação com a natureza – com destaque para a paixão pela botânica –, além do polêmico tema do complô, abordado de forma dramática em outro escrito autobiográfico, Rousseau juiz de Jean-Jacques: Diálogos.
E assim Rousseau abre seus Devaneios: “Eis-me então sozinho sobre a terra, sem irmãos, parentes ou amigos, sem sociedade, tendo apenas a mim mesmo. O mais sociável e o mais afetuoso dos humanos foi proscrito por um acordo unânime dos que buscaram, nos refinamentos de seu ódio, o tormento que poderia ser mais cruel à minha alma sensível, rompendo violentamente todos os laços que a eles me ligavam. Eu teria amado os homens apesar deles mesmos. Foi somente quando deixaram de ser homens que puderam se furtar à minha afeição. Ei-los, portanto, estranhos, desconhecidos, nulos afinal para mim, já que assim o quiseram. Mas eu, afastado deles e de tudo, o que sou? Eis o que me resta buscar. Infelizmente, essa busca deve ser precedida de um exame de minha posição. É uma ideia pela qual eu preciso necessariamente passar se quiser chegar deles até mim.”
Sobre o autor
Escritor, filósofo e músico genebrino, Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) é uma das grandes figuras do chamado Século das Luzes. Suas obras – entre elas, o Discurso sobre as ciências e as artes, o Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, a Nova Heloísa, Do Contrato Social e Emílio – obtiveram logo enorme sucesso e desde então vêm motivando leituras apaixonadas de entusiastas e críticos nos séculos que o sucederam. De sua autoria, a Editora Unesp já publicou Cartas escritas da montanha (2006), Textos autobiográficos e outros escritos (2009), Dicionário de música (2021), Emílio ou Da educação (2022) e Rousseau juiz de Jean-Jacques: Diálogos (2022).
Título: Devaneios do caminhante solitário
Autor: Jean-Jacques Rousseau
Tradução: Jacira de Freitas, Claudio A. Reis
Número de páginas: 184
Formato: 13,7 x 21 cm
ISBN: 978-65-5711-063-8